DDD - Diário de Derrotas [30]

26/04/2012

22h45m

Deito pra dormir, com um milhão de dúvidas na cabeça. Deito pra dormir, depois de quase duas horas pra conseguir chegar em casa. Deito, depois de ter tomado toda a saraivada gélida de uma chuva repentina. São Paulo e o axioma do "Choveu, fodeu".

27/04/2012

07h10m

Acordo de bom humor. O estranho desse bom humor é que ontem eu pensei em suicídio umas mil vezes. Crises de meia meia-idade?

08h00m

Estou saindo de casa e está garoando. Hoje, sexta, seria o dia de levar o skate e dar uma brincadinha na Paulista depois do expediente. Também seria o dia da aula de História da Arte, mas o fato é que eu já desisti dessa merda. Se eu sou capaz de desistir de respirar, imagina de estudar?

08h20m

Estou nessa lotação do caralho com os vidros fechados e com ar viciado. Estou sentado, pelo menos, mas há essa filha da puta que não cala a boca nunca, nunquinha; plenas oito da manhã e a desgraçada fazendo fofoca, falando da vida dos outros, falando de sua vida extremamente desinteressante de operadora de telemarketing e, não, não há último volume no fone de ouvido que faça com que os cacarejos dessa praga cesse nos meus tímpanos.

08h40m

Já estou na plataforma de Itaquera, e hoje seria um dia que eu conseguiria chegar no horário, porém, o trem está vindo e já há um guardinha posicionado com uma cadeira de rodas perto de onde estou. Provavelmente ele está muito cheio e já tem alguém desmaiando.

O trem pára, e a mulher sai carregada, e é colocada na cadeira de rodas. Da porta onde eu estava parado, sou uma das únicas três pessoas que não conseguiram embarcar. As últimas que conseguiram arranjar um espacinho pra colocarem seus cus estão quase saindo no tapa, porque querem ir de qualquer jeito confortáveis, mas o pessoal que já está dentro não facilita e as empurra para fora.

Essas são as pessoas que dão bom dia no Facebook.

Que tatuam "Carpe Diem"

Que acreditam que Deus é benevolente.

08h45m

O trem continua parado aqui, com as luzes apagadas e com mais pessoas passando mal e saindo aos tropeções, já que o ar-condicionado foi desligado também.

08h51m

Finalmente consegui entrar. O que não é necessariamente o paraíso, já que estou, de novo, pelo terceiro dia seguido, atrás dessa senhora que acha que ainda dá um caldo e tem uma cintura à la Trópico de Capricórnio; com seus cabelos canecalon com cheiro de couro cabeludo sem lavar há cinco dias e etc. Essa cidadã parece empinar a bunda, enfim. E eu fico no impasse de não ter pra onde ir, com o antebraço atravessado - já que seguro a mochila perto do chão - no meio de seus proeminentes glúteos. Querendo morrer.

09h02m

Tatuapé. Nem fodendo que chegarei no horário. O trem parou, saíram meia dúzia de pessoas atropelando todo mundo e entraram umas duas dúzias, muito esbaforidas e com bafo de rola, peidando e falando alto e pisando nos pés alheios. Me livrei da Tia Bunda, mas estou numa posição tão desconfortável, tão terrível, que nem achei lugar pra colocar meu pé esquerdo ainda. Então eu piso sem querer no pé desse carequinha com cara de invocado, que fica me encarando como se eu tivesse culpa ou medo de alguma coisa.

Eu só queria amassar o crânio de alguém com uma chave de roda.

09h35m

Chego até que num horário razoável no saguão do prédio. Passo a catraca, desejo bom dia - talvez o mais sincero que desejo - aos porteiros e à faxineira do prédio e me encaminho ao elevador. Também dou bom dia ao Pelé, o gato preto, e ele, como sempre, me ignora. Então chega essa pessoa assim que o elevador chega. Nós subimos juntos e ela começa a falar pra eu entrar no site da Ticket pra ver a novidade. Que eu já bem sabia.

- Vão descontar dois dias esse mês - A pessoa diz.

- Pois é, tem feriado, né? - Retruco, de mau humor.

- Mas nunca fizeram isso...

- Eu sei. É triste. Mas não vou reclamar. Passei 50 dias afastado no ano passado e eles me pagaram tudo como se eu estivesse trabalhando. O que são dois dias?

Com isso, chego no meu andar. Saio do elevador.

Abro a porta, só pensando em passar manteiga nas minhas torradas e comer. Porque estou com uma fome do cão e, com fome do cão, eu viro o próprio cão, de tanto azedume.

Eu abro a porta e desejo um bom dia coletivo e, no segundo subseqüente, já vem a notícia de que terei que ir junto com um rapaz no arquivo morto da empresa, que fica depois da Treze de Maio, carregar caixas e outras tranqueiras.

Como é fechamento de mês, eu tenho que preencher cinco planilhas diferentes, pra mandar pro contador.

Como é fechamento de mês, eu tenho que emitir todas as notas de cobrança de honorários pra mandar tudo no primeiro dia útil do próximo mês.

Como é véspera de feriadão, e o Jurídico não trabalhará na segunda-feira, todos adiantarão seus pedidos de guias com prazo para quarta-feira hoje.

Ligo o computador e vou ao banheiro lavar as mãos.

Lá fora, começa a chover.

E meu estômago ronca.

09h55m

Olhei todas as contas da empresa e não há muito o que fazer hoje em relação a elas. Abro o e-mail e começo a trabalhar nas guias. Estou ouvindo um tesão de música no volume mais alto. Consigo fazer emitir duas, até que:

- Rafa?

- Sim?

- Você tá muito ocupado?

- Demais. Por quê?

- Porque a gente precisa descer lá agora.

Olho através da janela a garoa caindo firme.

Olho os oito e-mails não lidos, sendo que dois deles, pelo menos, têm cinco pedidos de guias diferentes.

Bloqueio o computador, olho as torradas e me levanto.

10h05m

- Bom dia meu amor! Como você tá hoje?

- Mal como sempre, com um mau humor do demônio. E você, Nega?

- Hahahaha você é terrível!

- Onde que tá o carrinho?

- Que carrinho?

- Sei não. De feira, acho. A gente vai descer lá no morto pra trazer algumas coisas...

- Vish...

10h10m

Comprei essa bolacha waffle de chocolate. Detesto bolacha, ainda mais dessas, farofentas. Mas é o que tem pra hoje.

Então eu e o meu companheiro de infortúnio - que, por sinal, assumiu o cargo que eu tinha quando da ocasião da minha """"ascensão"""" - descemos a Brigadeiro conversando e carregando nossos carrinhos metálicos e irritantes; eu, vou devorando as bolachas e as dondocas que voltam da academia suadinhas, ou as dondocas que saem de seus apartamentos com o cabelo molhado, com o cachorrinho simpático e fresco cagando na calçada.

Até que uma mulher que vem do sentido contrário e, passando ao meu lado, faz um gesto repentino e derruba da minha mão a que parecia ser a bolacha mais gostosa do pacote.

- Presta atenção, velha do caralho.

- Que isso, menino?

Nem eu sei, minha senhora. Não costumo ser assim. Acredite.

10h25m

Mil caixas de folha de sulfite com processos dentro. Mil grossos calhamaços de processos empilhados. Mil pastas AZ abandonadas. Mouses velhos, teclados, caixas de arquivo, fios, carregadores, microondas, cafeteira, armários de metal, sacos pretos cheios de coisas que não sei precisar e etc, etc, etc.

- O que a gente tem que levar daqui, afinal? - Pergunto.

- Ela disse que essas pastas suspensas, essas caixas de arquivo e...

- E...?

- Não sei.

A gente fica sem saber o que fazer. Com tudo o que sabemos que temos que levar, precisaremos de pelo menos vinte viagens com nossos carrinhos mirrados. E sabe-se-lá mais o que teremos que levar.

- Bom - digo, entre uma bolacha e outra - vamos começar pelas pastas suspensas ali.

A gente abre uma sacola gigantesca e vai colocando as pilhas de pastas suspensas, até que mal conseguimos tirar o saco do chão. Tentamos repetir o processo com o carrinho de feira, mas não cabe quase nada nele.

Aí, a gente desce um lance de escada em curva, daqueles que os degraus não arcam com uma pata de gato, de tão estreitos, e depois descemos mais um lance de escada reta, até seguir adiante pelo corredor que desemboca na porta da rua, da Brigadeiro Luís Antônio.

Continua garoando. E a gente sobe a rua puxando nossas merdas de carrinhos, tomando chuva na cara e achando que tudo está bem.

11h00m

- Nega, vou precisar te encaminhar os e-mails das guias...

- Por que, Nego?

- Porque tem MUITA coisa lá embaixo, e a gente não vai acabar tão cedo. Inclusive, a gente subiu aqui pra pedir autorização pra chefona-mor pra pegar um táxi. Senão, não dá. Tá chovendo, véi...

Ela entende a nossa situação. E entra na sala da chefona-mor e explica a situação, enquanto ficamos do lado de fora olhando.

- Sabe o que coloca uma pessoa em ascensão? A capacidade que ela tem de tirar o próprio cu da reta e colocar o dos outros. Esse mundo é um lixo.

- Oi?

- Nada não - eu digo - apenas pensei alto demais.

A chefona-mor lança um polegar positivo pra gente de dentro da sala.

Menos mal.

11h10m

- Ela autorizou o táxi - eu digo - acho que uns vinte reais dá.

Enquanto o dinheiro é providenciado, sento na minha mesa e encaminho todos os vinte e-mails com os pedidos de guias pra Nega. Que vida...

11h30m

Estamos novamente no morto, depois de uma outra garoa pra chegar até aqui. Tudo o que temos que fazer agora é carregar toda essa pilha de caixas amarelas de arquivo morto - que ainda não foram dobradas e transformadas nas caixas propriamente ditas - até a porta da rua. Depois, carregar as caixas azuis. Depois, as de papelão. As duas últimas ainda estão intactas, empilhadas direitinho e atadas com um barbante. As amarelas estão todas displicentemente espalhadas umas em cima das outras.

E é um porre carregar essas porras.

Há também um saco preto que deve estar pesando uns quarenta quilos.

Então a gente começa a carregar essas coisas escada abaixo, suando feito porcos, enquanto a chuva cai lá fora e gente que não faz nada da vida e é sustentado pelos pais reclama no Facebook e no Twitter que a vida é difícil, enquanto assiste Power Rangers e toma um Toddy quentinho.

11h50m

Terminamos de descer tudo o que tinha direito. Abrimos a porta e ficamos esperando surgir um táxi que caiba tudo numa só viagem. Aparece um Fiat Idea e eu dou o sinal. O cara encosta.

- Cara - eu digo - preciso fazer uma corrida até a esquina da Paulista com a Brigadeiro.

- Sobe aí.

- Não, espera - "Caralho", penso - Eu tenho umas caixas pra levar até lá. Quanto fica?

- É muita coisa?

- É tudo aquilo ali, ó - e aponto as tranqueiras empilhadas.

- É que com carga eu cobro preço fechado, irmão.

- Quanto?

- Quarenta!

- QUÊ? Até a Paulista só, irmão! É muito.

- Trinta, vai!

- Só tenho vinte... Pegar ou largar.

- Vai, vai. Vambora!

Ele sai do carro, abre o porta-malas e dobra o banco traseiro.

E carregamos todas as coisas e empilhamos todas no porta-malas.

O carro desliza gostosamente pelas ruas arborizadas da Bela Vista.

E não está caindo nenhuma gotinha do céu.

12h15m

Estamos no estacionamento do prédio, descarregando a porra toda.

Esse taxista é muito gente fina, cara!

Depois que acabamos, trocamos um aperto de mão e agradecimentos e ele se despede, com seu vintão ganho em menos de quinze minutos de trabalho.

E eu e meu companheiro ainda temos que carregar isso tudo até o elevador.

E colocar dentro do elevador.

E descarregar do elevador.

E descarregar dentro do escritório, pra não ficar no corredor do prédio.

E, enfim, descarregar as coisas em seus devidos lugares.

Ainda nem bebi água. Minha camisa está molhada e estou na dúvida se é suor ou chuva. Minhas mãos estão pretas e meus antebraços todos cheios de poeira. Daqui a pouco começarei com crises de espirros.

Bom, pelo menos... (...) ... (...)

12h30m

Estamos, e eu me comparsa, ajeitando as caixas-que-ainda-não-são-caixas, assimetricamente umas em cima das outras, pra podermos passar um barbante em volta e colocar em algum canto.

E isso é chato pra caralho.

Eu digo, chupando um dedo que sangra por causa de um cortezinho ardido feito o diabo, feito com papel:

- Isso me lembra a época que eu entregava lista telefônica.

- Você já trampou entregando lista telefônica?

- Já. Umas três campanhas do Listão. Eu tinha a sua idade. - Falo, todo experiente nos subempregos - A gente era largado num local bem longe de casa, de tudo, com um mapa estúpido na mão, com uma folha de controle de entrega e com um carrinho mambembe com cento e cinquenta listas grossas pra entregar. Sem um puto no bolso. Sem ter o que comer, o que beber e onde cagar.

- Hahahaha.

- É sério. Largavam a gente nos casarões do Morumbi e não tinha um bar perto. E os guardinhas reclamavam quando sentávamos na calçada pra descansar ou quando tentávamos dar uma mijada nas esquinas.

- Caramba.

- A vida é uma merda, cara. O que eu quero dizer é que você tem sorte de já estar num emprego como esse com a idade que tem. Não deixe que nenhuma ilusão ou gente desgraçada e pobre de espírito diga que você não pode ser o que quer.

- (...)

13h15m

Se você pensa que estou almoçando ou descansando, você está enganado. Estou a caminho do Supremo Tribunal Federal pra pagar uma guia de um valor baixíssimo.

Debaixo de garoa, de novo.

Não que eu seja burro de não andar com guarda-chuva. É que, hoje, quando não deu (por causa dos carrinhos), a maldita só começou a cair depois que já saí pra rua.

13h20m

Desisto de andar e pego um ônibus, desses que descem a Consolação. Eu gosto de descer naquele ponto de cemitério e ficar olhando os mausoléus. E hoje está um dia particularmente lindo pra contemplá-los.

13h25m

MEU SANTO JESUS AMADO DO CÉU!

13h40m

Estou no Vitrine, ainda apaixonado por um gato enorme que encontrei numa rua sem saída e fiquei brincando por uns dez minutos. Estou comendo picanha ao alho, entre outras coisas. E está estranho... Houve uma época que eu comia a carne daqui com um pouco de pesar; estava quase virando vegetariano, e agora me delicio com isso.

Que bosta.

14h00m

Outra garoa. Agora a caminho do Pedrão Lessa.

14h30m

Estou na fila ainda, quase dormindo, quase acordado.

O que me mantém acordado são as quebradas de pescoço que dou toda vez que uma atendente de legging passa pela minha frente carregando suas papeladas burocráticas.

Adoro mulher.

15h30m

Consegui chegar ao escritório.

15h35m

Consegui dar o segundo mijão do dia.

Também consegui escovar os dentes.

E beber dois copos de água.

15h45m

Fiz tanta coisa que não estava nos meus planos que agora nem sei mais o que eu de fato preciso fazer.

Não queria fazer nada.

Está um clima estranho por aqui.

Sei lá...

16h00m

- Sobe aqui depois...

- Por quê? Qual foi?

- Sobe.

- É má notícia, né?

- E das grandes...

- Ai, caralho... Sabia que esse pressentimento de que algo daria errado hoje não estava me consumindo à toa.

Então eu subo até lá.

- Diga, nega. Qual foi o fuxico com meu nome no meio da vez?

- Esse.

E ela tira uma caixa de Balas Hobby da bolsa e me dá.

E eu quase choro.

18h00m

- E aí caraio, onde a gente vai beber?

- Ah, vamos lá no Opção.

- Mas gente - eu digo - lá é caro e longe. Tem esse barzinho aqui da Brigadeiro que a gente paga quatro e toma cinco, e é quase dois reais mais barata que lá.

Então ficamos esperando e Nega e discutindo frivolidades.

18h15m

- Tenho o dia inteiro pra te esperar, morena.

- Hihihihi que honra!

- Pleiteia, Nega, pleiteia! O Rafa quer levar a gente prum pardieiro!

- Teu cu!

E rio.

- "Pardieiro" foi ótima, puta que pariu!

19h30m

- Esse aí é o cara do "tche tche rere tche tche"? - Eu pergunto.

- É sim. Nossa, imagina um tche tche rere tche tche com ele?

- Sai pra lá, viado! HAHAHAHA

00h00m

Estou na Vila Matilde. Nem sei por que desci aqui. Acho que pra variar um pouco. Estou bêbado, mas não sei se é de sono, de cerveja ou de cansaço. Eu durmo, cara. Eu durmo com a cabeça no vidro da lotação.

E essas dormidas de transporte público são quase tão boas quanto as que consigo na minha cama, depois de um dia terrível.

00h50m

Chego em casa, sem sono. Que dia longo, puta que o pariu!

02h30m

Deito pra dormir, enfim.

28/04/2012

10h11m

- CALEM A BOCA, PORRA!

Eu grito, da minha cama.

11h20m

- EU VOU TER QUE ENFIAR A MÃO NA CARA DE QUEM PRA CONSEGUIR DORMIR?

Eu grito, da minha cama.

12h11m

Estou na minha cama, deitado com a barriga pra cima e com um travesseiro atravessado na cara. Há uma meia dúzia de pessoas que não moram aqui falando alto.

Então eu levanto, me recosto no batente da porta e o silêncio surge.

- RUA, SEUS FILHOS DA PUTA!

Volto pra cama.

17h10m

Estou curtindo o frio com as gatas enroladas no meu colo e ouvindo All We Want, Baby, Is Everything, do Handsome Furs. Claro, queria ter podido ir andar de skate, mas tudo bem.

E a vida só parece ter sentido agora.

*

28/04/2012

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 28/04/2012
Reeditado em 28/04/2012
Código do texto: T3638491
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