Grilos


O grilo na varanda

Não sei como o pilantra consegue viver tanto tempo sozinho, sem entrar em contato com ninguém da sua barulhenta turma. Pelo desespero com que todas as noites bota a boca no mundo, não atraiu ainda nenhuma fêmea ao canteiro de nossa varanda, para onde veio de mala e cuia, e está nesse cricrilar noturno há quase um mês, infernizando as minhas madrugadas. Por volta de meia-noite, o condomínio mergulha no silêncio, e os cricrilos ganham um volume descomunal. O som agudo e monocórdio entra-me pelas orelhas como um alfinete.

Cansado de fracassar nas tentativas de localizá-lo, caí na besteira de pesquisar um pouco na internete sobre os hábitos do inseto. Com isso surgiu uma dúvida crucial que pode fazer diferença na hora de assediá-lo. Ou seja, não tenho mais certeza, como antes, de que o meu grilo é realmente um gryllus assimilis (grilo-preto). Se bobear, trata-se de um anurogryllus muticus (grilo-marrom), o que vai exigir do cronista mais paciência e meticulosidade para desentocá-lo. Não é para menos. O assimilis, quando não está perturbando os outros, oculta-se sob torrões de terra úmidos e restos culturais; o muticus, mais profissional, constrói galerias subterrâneas, onde organiza a câmara nupcial e passa o dia afinando as nervuras das asas anteriores para o recital noturno. Recital, para as comadres dele; para mim, é puro escarcéu. Quando a noite sobe, vem com tudo das catacumbas, posta-se na boca da minúscula caverna, que é a sua zona de canto, e entoa essa eterna ária de uma nota só.

Além desses dois, mencionou-se também no Fred’s Burger, onde discuti o problema com o Zé Peru e o Águia Negra, o acheta domesticus (grilo-doméstico ou grilo-das-casas), coisa que ainda vou verificar com um entomologista aqui do bairro. Tenho para mim que os dois parceiros de copo se deixaram levar pela obviedade do nome. Se fosse por aí, eu mesmo o chamaria de grilo-das-varandas.

Preocupada comigo, minha ex-mulher ligou e aconselhou-me a importar uma lagartixa-da-mauritânia ou um calanguinho do sertão nordestino, predadores eficazes dessas pragas de hortas e jardins. Vamos com calma, Betinha, é apenas um grilo, não um bando deles. Enquanto o gaiato não arranjar uma namorada...

E não vai arranjar. Já tomei providências (depois eu conto) para detectar qualquer aproximação muticus ou assimilis por parte de fêmeas. Ele, se quiser, vai ter de sair na mão para tirar o atraso. Minha esperança é justamente que morra de onanismo. Se não morrer pela boca. Aprendi em um sítio ecológico que os da sua espécie são polífagos, ou pantófagos, à escolha, e já começo a pensar em espalhar pelo canteiro alguns torrões de cinza de cigarro. Pode parecer crueldade, mas o cara não me dá outra opção. Se se deixasse capturar, numa boa, eu o levaria até o matagal do rio Tingüi, aqui perto, onde ele encontraria seus iguais e fêmeas a dar com o pau, literalmente.

No entanto, antes de partir de uma vez para o grilicídio, amanhã faço uma última tentativa. Orientado por um plantador de couve, comprei hoje à tarde uma lupa e um pequeno fisgador de palha seca. Se o malandro não colaborar entregando-se espontaneamente, vai morrer. Nem que eu seja obrigado a tocar fogo no canteiro.



Notícias de um grilo que se foi

O criterioso Mengtzu, filósofo confucionista que viveu entre 380 e 289 antes de Cristo, declara em seu famoso tratado de moral que os grilos são amuletos vivos da boa sorte e que protegem contra o mau-olhado. O pouso ocasional de um desses ortópteros no ombro direito de uma pessoa é promessa de saúde, riqueza material e felicidade no amor. Isso deve explicar por que os chineses os tratam como bichos de estimação, não obstante a existência daqueles que treinam os pobres coitados para grilos de briga e gastam dinheiro a rodo apostando em seus lutadores. Chato, porque, segundo regras milenares, não há vitória sem a morte de um dos rivais. O fato de que também apareçam na culinária chinesa deve estar ligado à crença nas virtudes mágicas da ingestão do inseto, e não deve ser outra a origem da velha máxima mengtzuana: “Felizes daqueles que têm um grilo na barriga.”

É bem verdade que o gryllus alpendri (grilo-das-varandas) que passou um mês hospedado no canteiro de nossa varanda nunca pousou no meu ombro direito. Nem no esquerdo, antes que me perguntem. Não. Levava todo o dia claro em suas galerias subterrâneas, cuidando da despensa e da câmara nupcial, e afinando as asas anteriores para o berreiro noturno. Canto de acasalamento, dizem os entomologistas, mas tenho certeza de que por aqui não arranjou fêmea alguma com isso. Do contrário, segundo minhas consultas a alguns sítios internéticos sobre o tema, os cricrilos teriam ganhado uma rouquidão não inteiramente estranha aos nossos próprios hábitos na hora de trepar. A rouquidão (rouquidão das nervuras das asas, vejam vocês) e o baixo volume do canto indicariam a presença de uma parceira, sem erro.

Foi por isso que se mandou, não tenho dúvida. Com certeza leu minha crônica “O grilo na varanda”, sentiu que era com ele, soube do matagal à beira do rio Tingüi, a dois ou três saltos de onde estava, arrumou suas tralhas e deu o pinote. Fez muito bem. Ali não vai cantar em vão.

Confesso que não me deixou saudades. Não vou agora mentir e dizer que não estava doido para acabar com ele. Depois de ir para a cama, levo quase uma hora para conciliar o sono, costume antigo, e com a barulhenta cantoria dele isso chegou a um nível intolerável. Todos aqueles que, além do grilo, leram a crônica supramencionada devem lembrar-se que eu tinha até comprado uma lupa e um fisgador de palha seca para desentocá-lo durante o dia. Foi ótimo que tenha ido embora espontaneamente, poupando-me de cometer um grilicídio. E se tomou o rumo do nosso malcheiroso Tingüi, pululante de fêmeas, está neste momento grilando uma boa dúzia delas.

Mas é preciso corrigir o filósofo chinês em um detalhe crucial. Pelo que aconteceu comigo, eu diria que os grilos sempre dão sorte, pousando ou não no ombro direito dos outros. Quase sem trabalho algum nos últimos seis meses, já me contrataram para cuidar da preparação de três livros só nesses primeiros vinte dias de 2007. Isso é absolutamente inédito em minha vida profissional. Claro que foi o grilo. Três livros, em pleno mês de maré baixa no mercado editorial, é sorte das grandes. Descontado o exagero, é megassena.

Vou torcer por você, meu saltitante amigo. Tomara que em seu novo hábitat encontre uma grila de fechar o matagal, e ambos produzam muitos grilinhos simpáticos e sortudos. E, pensando melhor, apareça quando quiser. Venha com a família para uns dias em nossa varanda. Temos agora boldo, guiné, espada-de-são-jorge, saião e outros quitutes grilescos. Está com medo das sugestões da Betinha? Esqueça. Se aparecer por aqui uma lagartixa-da-mauritânia, eu acabo com ela.


(17.1.2007)