Meu Amigo Acordeon
Ao chegar em minha casa, há quatro décadas, proporcionou-me grande felicidade, realizando-me um sonho que acalentava desde criança, quando já estava em moda mulheres tocando sanfona. É um belo instrumento. Tem o corpo em madrepérola vermelha, a frente dourada onde ficam os registros e os abafadores cor de prata; o teclado de marfim branco, onde executamos a melodia, é entremeado de semitons em cor preta que chamamos de sustenidos e bemóis. No lado esquerdo, oitenta baixos também em cor preta, colocados em forma de paralelogramo, fazem o acompanhamento. Ganhei-o de meu pai, atendendo a um pedido que lhe fiz, considerando que meu salário de professora não dava para realizar esse sonho.
_ Isto é para você. Acho que vai gostar.
Recebi o objeto, agradecendo com toda a euforia que tinha em meu coração, semelhante a uma criança diante de um brinquedo de Papai Noel; no entanto, já contava dezenove anos. Coloquei-o em meus braços e procurei retirar alguns sons que não me custaram muito, porque já tinha algum conhecimento de piano e harmônio de igreja.
Desde então, meu acordeon tem sido um inseparável amigo. Nossas vidas, uma verdadeira comunhão de sentimentos, de idéias, que se manifestam ora tristes, ora alegres. Constante companheiro nos momentos bons e na desventura. Muitas vezes, quando o peso da amargura cai de cheio sobre mim, é este leal amigo que me consola e me enxuga as lágrimas, dizendo-me: Não chores! Canta! Quem canta, seus males espanta. Seguindo esse conselho, tomo-o nos braços e, por algumas horas, expulsamos os terríveis males que aniquilam a alma e, quando menos espero, o milagre da música torna-me leve como o pensamento, com o íntimo a sorrir.
Ei-lo, ali, sobre a poltrona ao lado da sala. Espera alguém que o tome nos braços e dedilhe algo vindo do coração, já que a música é a imagem viva do pensamento e do sentimento da alma. Completa hoje, o seu 40º aniversário. Como sua melhor amiga, compartilho dessa alegria, unindo coração a coração, para juntos interpretarmos o melhor do nosso repertório, aquelas músicas que nos fazem viajar no tempo, aos momentos inesquecíveis que a vida nos proporciona. Nada de sentimentalismos. Hoje, então, estamos com a alma em festa. É o seu aniversário. Tomo-o em meus braços num abraço amigo, de gratidão. Estou tocando “Parabéns pra você”, para homenageá-lo.
A seguir, num “pout-pourri” de valsas vienenses, vamos dançar as belíssimas valsas de Johann Strauss: “Danúbio Azul” e em seguida, “Contos dos Bosques de Viena”. Os primeiros acordes... O ritmo austríaco... Estamos um nos braços do outro, valsando felizes, sentindo a leveza da música e o encanto do momento! Enlevados pela magia do ritmo, uma sincronia de emoções nos transporta em retrospectiva a um passado distante em que minha alma sonhava e flutuava nos volteios graciosos da adolescência. Sentia-me deslizando sobre aquelas águas azuis, como um cisne solitário, desfrutando da brisa gostosa, sem rumo certo, isento de todas as agruras que cruzam os caminhos da vida. No paraíso dos Bosques, sou um pássaro a voar nas asas da melodia, misturando-me à mística orquestração da natureza. Meu Deus, como isso me faz bem!
Agora, meu querido, dançaremos “La Cumparsita”- “o mais clássico dos tangos, composto pelo uruguaio Gerardo Matos Rodríguez, para tristeza dos argentinos, cuja terra recebeu o título de “Terra do Tango”. Apenas o ritmo foi colocado pelo pianista argentino Roberto Firpo, transformando em tango o que era marcha de carnaval – “La Cumparsa.” Este é o nosso tango preferido. Quantas vezes o curtimos juntos! O ritmo “caliente” põe em efervescência o nosso sangue. O meu, brasileiro diversificado, unido ao seu, italiano e quente. A emoção toma conta dos nossos sentimentos e nos perdemos embalados na doce volúpia da música frenética e melodiosa: “Entre la triste frialdad que lenta invade el corazon/ Sintió la cruda sensation de su maldad!” Como este tango mexe com meus sentimentos! Quantas vezes minha voz jogou ao vento perdidas ilusões, pedaços de saudades e corroídas esperanças ao som envolvente desta composição maravilhosa! Cada vez que o escuto, vertem lágrimas presas na alma para aliviar o cruel desgaste do tempo, que se compraz em me reproduzir na memória essas lembranças queridas.
Não desperdicemos o seu dia, meu amigo. Brindemos com um forte abraço, mais uma vez, o seu aniversário. Façamos o propósito de sempre alegrarmos os que se encontram com a alma mergulhada no infortúnio, transformando esses ambientes em lugares festivos, com os sons maravilhosos da boa música.
E aqui estamos os dois, sem vinho, sem champanha, brindando a nossa amizade e ao seu companheirismo.
FELIZ ANIVERSÁRIO, AMIGO!
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Maria de Jesus. Fortaleza, 26/04/2012