ENGARRAFADA
Alice acabara de chegar a São Paulo. Muitos reclamam do trânsito, mas a ela parecia ser tudo a mesma coisa. Ou não! Tudo dependia do momento, do local, das circunstâncias... Levar duas horas para ir da marginal Tietê até a Paulista, pela Av. Pacaembu, era de fato um tanto fora de propósito. Muito fora de propósito tornou-se quando ela descobriu que aquela demora era devida à troca de uma luminária, algum problema num poste, no entroncamento com a Dr. Arnaldo. Mas, porque durante todo o trajeto ela não soubera das razões da lentidão, isso não afetou seu humor. Muito pelo contrário. Alice acreditava que a pressa é algo absolutamente inútil e o trânsito pode ficar caótico a qualquer momento, em qualquer lugar. Aprendera que a única salvação para tais situações era gostar de dirigir, ouvir boa música e conviver bem consigo mesma, com os próprios pensamentos. E seus pensamentos voavam de um ponto a outro, de forma que ela quase esquecia onde estava e o que fazia ali. Inventava situações para quem estava na fileira ao lado, ora da direita, ora da esquerda. Indo ou voltando do trabalho ou será que seria do médico, das compras... Durante o trajeto pele avenida lembrava da época das demonstrações de ginástica olímpica no sete de setembro; de percorrer todo o trajeto da avenida a pé, pois o local era residencial e por ali não passavam ônibus. E das caronas que surgiam de vez em quando... Eram os rituais que marcavam o tempo e as estações. Quase ao final do percurso, olhava o muro do cemitério e perdia-se em lembranças das vezes em que ali estivera, nos dias de finados, a visitar o túmulo de um russo que mal conhecera, Dr. Poliakoff, membro da diretoria e chefe de seu pai na Cia, Antarctica. Ela o visitara uma vez, já perto do fim, no hospital. Dele haviam herdado um cachorro, o Malich, que viera morar com eles a pedido de D. Erna. Ela nunca soube o que queria dizer Malich, mas era um nome bonito para um cachorro. Junto com ele veio um hábito curioso. O Malich dormia nos pés da cama; assim fora ensinado para aquecer o pés de seu dono. Dr. Poliakoff não tinha família no Brasil, ao que parece, então seu pai cuidava do túmulo de granito preto. Ele mesmo esculpira uma cruz russa, uma cruz bizantina e a colara no lugar devido, acima do nome. O trânsito começava a fluir melhor e Alice pensou que preferia os congestionamentos; por isso não se irritava. Aquele era um momento de fruição, de demorar o olhar pela cidade que amava de uma forma que jamais faria no trânsito com fluência normal, no embalo da velocidade com que todos viviam na cidade grande.