Necessário se faz recolhermos nossos pedaços espalhados pelo tempo nas estradas percorridas. Certamente doloroso, mas vital para que consigamos remendar os buracos existentes no nosso interior. Alguns conseguiremos, outros não. Mas, tentar é vital. Mergulhamos no passado à procura de refazer o inteiro como se ele ainda existisse.
Onde o riso farto, onde o gargalhar despudorado, onde o arfar nos passos rápidos, cabelos jogados ao vento a balançar ao ritmo do coração? Pouco restou do pé de canela sempre pronto para ser lambido das folhas ao tronco. Um odor maravilhoso se expandia no vermelho do caule. E as tijoleiras enormes assentadas em forma de espinha de peixe, aguadas antes da verredura, o que delas foi feito? Os lajedos encolheram e lá se foi a barroca onde lavava a roupa de minhas bonecas. A tosca ponte de madeira estralava ao meu pisar e ameaçava ruir a cada chuvarada, e à medida que o tempo passava, ela mergulhava no rio. Tinha a nítida impressão que caminhava sobre as águas. Alí a água era esverdeada e escorria calma, mansa, silenciosa. Um pouco abaixo, os lajedos se encarregavam de fazer acontecer o barulhar do rio que serpenteava em filetes por entre as fendas. Escondiam alí para aparecer acolá. No seu caminhar arrastavam flores roxas que boiavam, quase planando, eternamente no rio. Nas margens, dezenas de caramujos de cor laranja, me atraiam. Como imaginar um encanto daqueles perigoso? Nunca... Aqueles deveriam ser especiais, já que nunca contraí a famosa barriga d'àgua. Catava-os um a um e logo estava pronta a fila rosada para meu encanto. Sobre o grande lajedo, um imenso pé de ingá e um de tamarindo. Que alegria alcançar um, rasgar no dente sua vagem e lamber seus gomos brancos ou marrons, doces ou azedos. Entre as gretas das pedras nasciam como por encanto, tomates miúdos, maxixes, quiabos, e até hortelã. Na volta pra casa, uma colheta e o balaio se enchia.
Como esquecer, se tudo ficou entranhado em mim? A ida para a cacimba, toalha no pescoço, cuia na mão. Um canto, sem letra, desentoava no ar, e enchia o silêncio. A pesada tampa da cacimba, não só escondia uma água azul, cristalina, mas enormes sapos e rãs que alí ficavam como guardiões da preciosidade. Um sai pra lá, e logo minha nudez arrepiava com a água gelada escorrendo pelo corpo abaixo. Claro que uns gritinhos faziam parte do espetáculo.Ao redor da cacimba uma sinfonia de grilos afinavam com os sapos...Era um foi, não foi, foi, não foi... As árvores me protegiam e lá ia eu, cheirando a lavanda, a me vestir estrada a fora. Era uma sensação gostosa, uma liberdade indescritível.
Um muro, quase muralha, eternamente coberto de lodo mais parecia uma página de veludo a esperar por minhas letras. E eu não me fazia de rogada. Logo alí deitava montes de versos quebrados, corações partidos, declarações de amor, da menina eternamente apaixonada. Se hoje, eram os protagonistas, quem sabe amanhã seriam relegados à ribalta. Mas, o amor, esse continuava independente do eleito.
Mas, algo me intrigava. Aquela burra... Não, não era burra o bicho, era burra um imenso cofre, onde meu avô guardava seu dinheiro. A porta do cofre ao ser aberto rangia num barulho assustador. Isso só fazia aumentar meu fascínio por ele. E lá vinham os pensamentos...Por que não viví esse tempo dos dobrões de ouro portugueses? Tudo se foi com a peste que dizimou os cafezais de meu avô. Das três fazendas, restou apenas um sítio para moradia e sustento da familia. E lá se foi o armazém de especiarias que guardavam queijos do reino, azeitonas e bacalhau do porto e outras iguarias. Do imponente cofre, restou a humilde e degradante função de abafar bananas até os dias de hoje. Que triste fim!
Os parreiras de uva encolheram, ficando apenas uma e com frutos pequenos, como a lembrar um passado de fartura. Saudades dos bandos de saguins que vinham se refestelar com as uvas. Á noite, era a vez dos guaxinins se banquetearem. Meu avô via, mas dizia, Deus não fez só pra gente,,,
Muitas vezes deitava no lajedo a observar as estrelas pastorava uma cadente para fazer um pedido. Claro que era um amor. De dia, ainda no lajedo, sonhava e sonhava sonhos lindos. Os olhos em direção as mangueiras se deliciavam com os macarrões ( ripsalis) a escorrer galhos abaixo. Pequenas bolinhas transparentes grudadas em seus talos, pra mim, eram cristais.
Lá dei meus primeiros passos no teatro. De improviso, em improviso, com a anuência de meu avô, criava figurinos e cenários com papel crepom, textos sem pé nem cabeça, mas enfim, pra que cabeça, bastava só coração e alegria. E isso tinha de sobra. Nem é preciso dizer que a estrela maior era eu. A platéia era mínima composta geralmente de familiares e empregados. O aplauso, garantido. Meu avô sempre foi meu protetor, meu ídolo, meu mestre. Na venda dele, os empregados compravam e anotavam num caderno as dívidas. Quantas vezes pedi de presente os tais cadernos ou então roubava carne de charque, peixes secos e outras coisas para os fregueses. Claro que meu avô sabia, mas fazia vista grossa.
A casa enorme, as paredes enormes, tudo me parecia enorme, até meu amor por aquele chão. Num dos quartos, uma balança fincada na cumeeira do teto esperava os fardos de café e pimenta do reino. Nos intervalos, lá estava eu subindo e descendo na balança fazendo um barulho enorme quando alcançava o chão. O cheiro era forte e me fazia espirrar contínuamente, mas nem isso me afastava da festa.
Um quarto, que ainda existe e resiste, ostenta o pomposo nome de quarto do jardim. Não por acaso. Uma porta e uma janela nos leva aos pés de bugarí, rezedá e jasmim laranja. Precisava mais?
Bem, mas meu quarto era o primeiro. Uma cama enorme, de imenso espaldar entalhado em madeira vermelha, lençõis alvos com cheiro de rezedá. O lastro de arame trançado faz um barulho enorme que me embala. Uma penteadeira fica me olhando e lembrando quantas horas eu alí passava me admirando, me decorando...E pensava...Para eu ficar bonita, terei que tirar esse sinal da testa...Tirei, nada aconteceu.
As comidas eram fartas e variadas. O fogão ainda queima a lenha e as panelas ainda são de barro... O cheiro ainda resiste, a burra ainda está lá, o muro que se servia de página, caiu. Mas, o que importa é que lá está a responsável por tudo isso que vivi. Tia Odília, do alto de seus 97 anos, tia e madrinha. é a guardiã de meu sonho. É pra senhora que escrevo. Vou lá levar essa crônica e escutar pela miléssima vez sua história do dia que Capitão Antonio Silvino visitou nossa terra.
Que Deus a bendiga e a conserve por mais tempo conosco.