CONCEITUANDO
E a senhorinha abriu a porta e mostrou aquele sorriso largo,onde era visível quase toda a prótese de dentes. Pegou minha mão e puxou-me sem delicadeza alguma para dentro de seu apartamento antigo, com quatro quartos grandes e espaçosos, como não se faz hoje em dia mais. (E não é assim dentro da gente também? Separamos compartimentos pequenos para os outros, queremos ganhar mais espaço para outras ‘coisas’ dentro da gente).
Entrei e ela já foi perguntando do meu final de semana. Sem esperar minha resposta, já foi logo contando da visita das irmãs no domingo e de como riu bastante com elas. Enquanto falava ia me levando até o quarto onde faríamos a consulta, passando pela copa onde tinha a mesa já posta com o lanche da tarde. Durante a reprodução do diálogo com as irmãs perguntou se eu aceitava um café com bolo ou se gostaria de deixar para depois da consulta. Eu sorri e ela continuou a me levar para o quarto, voltando ao caso da irmã mais nova.
Entramos, ela fechou a porta do quarto, as cortinas, acendeu a luz e ligou o ventilador. Sabia que eu morria de calor por causa das cortinas fechadas. Sem parar um minuto de falar, deitou-se de bruços enquanto eu lavava minhas mãos e vestia o jaleco. Separei todo o material necessário, calcei as luvas e comecei o curativo. Um silêncio pesado aconteceu e sabia que todo seu falatório era pra disfarçar a tensão daquele momento. Hoje eu iria dar um parecer sobre o tratamento e as perspectivas que tinha. Ela estava tensa. Ansiosa. Olhei, analisei, apalpei, limpei e sequei. E disse a ela que o prognóstico era excelente e que poderia viajar para o aniversário de cinquenta anos do filho no próximo feriado. Minha senhorinha ficou tão feliz que levou os braços até o rosto e derrubou quase todo o material no chão. Eu ri. Terminei o curativo e fui novamente lavar as mãos.
Quando voltei, perguntei o final da visita das irmãs e ela, com seu começo de Alzheimer, perguntou-me quem tinha contado que as irmãs tinham feito uma visita a ela no dia anterior. Ajudei-a a levantar-se da cama e saimos do quarto. Novamente passamos pela copa e ela ofereceu café com bolo. Eu disse que não, agradeci e pedi um copo d’água. Ela levou-me até a porta e quando fui dar um abraço de leve para despedir-me ela me agarrou bem forte e sussurrou no meu ouvido: “Obrigada!”. Afastei-me dela e, olhando-a nos olhos, sorri e acenei com a cabeça. Sempre fico sem saber o que dizer nesses momentos. Virei-me e fui embora.
Esse é o conceito de felicidade da minha senhorinha de oitenta e dois anos.