O líquido da desconcentração
Olho para o papel em branco. As linhas parecem fugir e nada me vem a cabeça para escrever, sofro sozinho. Ninguém estar perto de mim para me dar apoio. Neste quarto me distraio com pouca coisa, é um livro fora do lugar, um sapato emborcado e o andar de uma formiga em cima da mesa de estudo.
A interpretação do texto que leio não atravessa minha massa cinzenta e fico parado, fitando-o sem nada escrever. Volto a olhar para o papel tento iniciar a escrever a primeira frase, mas o telefone toca; vou atendê-lo? Ninguém atende. É verdade estou só. Irei atendê-lo mais no longo percurso de poucos passos perco minhas lembranças recentes e esqueço do que eu acabei de ler.
No retorno, volto a ler o texto desde o início, o texto parece ter um quilômetro, leio uma linha e imaginando ter demorado cinco minutos olho para o relógio e constato que eu demorei realmente um pouco mais de dez minutos. A musa da concentração não está do meu lado, porque? Quando eu mais preciso dela ela foge.
Olho em volta a falta de concentração me persegue, me distraio com um simples pássaro que passa em frente a janela do outro quarto, e até mesmo o Tic-Tac do relógio do outro lado do quarto me deixa nervoso. Levanto-me novamente emborco o relógio e volto a ler.
Que desenhos mal feitos esses que ilustram o texto, penso, e só nisso fico uns cinco minutos. Os segundos vão passando lentamente e o tempo parece agora demorar, abate-me o sono. De repente, uma súbita concentração invade meus pensamentos, e leio alguns parágrafos, acho, mas antes do fim um carro com autofalantes políticos atravessa pela rua, seu som invade meus ouvidos ao mesmo tempo que leva minha concentração.
Não digo que voltei a estaca zero pois ter lido algo já é produtivo, mesmo sem ter entendido coisa com coisa do que acabei de ler, mas digo que voltei a estaca 0,5, pois mesmo lendo as palavras foram se perdendo na música eleitoral e a interpretação se esvaindo com o rodar dos pneus.
Onde estava? Pergunto incerto, será que li todo o primeiro parágrafo? Acho que não. Acho não, tenho certeza que não. Volto para o começo. A noite cria estranhos sons e com lês me distraio: é um latido de um canino, o balançar das folhagens, o bater das portas e das cortinas sobre o translúcido vidro.
Percebo que um imenso líquido há em minha mente que não me deixa me concentrar, volto a olhar atentamente para a folha em branco, mas as pálpebras caem sobre a umedecida íris e caio no mais profundo sono de Orpheu. Sobre o texto? Apenas durmo sobre ele, poucas linhas lidas, muito menos ainda as linhas entendidas na leitura, nenhuma linha escrita.