Hoje só tem pão velho...
Amanheceu chovendo. O cheiro abafado, e o vento molhado me incomodam. Sinto-me asfixiada em dias de chuva. Desprotegida. Parece que as águas vão me retirar alguma coisa. Talvez o brilho que tentei cultivar durante a semana ensolarada. Curioso é que durante a semana ensolarada, eu me peguei reclamando, quase praguejando contra aquele mormaço que subia pelas minhas pernas, tomava conta do corpo todo e me fazia suar até o último fio de cabelo.
E nessa manhã, eu já com saudade do suor em minha testa, olho para as pessoas na rua. Parecem todas também asfixiadas. Cheiro de mofo.
Nos lugares aonde vou, tudo irritantemente úmido. Piso escorregadio. Congestionamento. Tudo muito apertado em dias de chuva. Todos são feios. As caras são cinzas, os olhos embaçados...
Tudo parece girar em torno de um mesmo ponto. Nem agonia percebo. Simplesmente não há o que viver. Minha roupa cheira à cachorro molhado. Me sinto pobre. E pobre no sentido íntimo da pobreza. Sem nada que possa me edificar como pessoa. Vida errante. Sem destino certo. Sem moradia própria. Sem segurança por perto. Uma estátua nua. Sem rosto. Sem pele, sem pulsação. Me vejo na rua. Criança com fome, nariz escorrendo, blusa de lã encharcada. Mãos frias. Pés descalços. A chuva fina batendo na carne sem vida. E o estômago fundo, vazio... Criança à porta de uma casa grande, de luz apagada, pedindo algo para comer. E a imagem de uma mãe que nunca foi minha: hoje só tem pão velho. E a criança sem perspectiva: eu quero, dona.
Hoje só tem pão velho, e é o que vejo por toda parte. Pão velho, murcho e embolorado.
A chuva me irrita. Talvez porque jogue na minha cara que, na verdade, o que sobra depois de tudo, é o que está fora do prazo de validade, o embolorado, e que tem de ser metido goela abaixo porque não há nada melhor para enganar o estômago.
E parece que a alma da pessoa se mostra mais em dias de chuva. E eu chego a sentir o odor fétido do bolor que vai dentro muita gente. Ou esse cheiro viria de dentro de mim?
E é tudo tão podre, tão vil, que me pergunto o real motivo da existência de muito ser humano (?). Questiono até o motivo de eu estar ali e com minha alma também tão exposta. Sinto-me vulnerável.
E as fotos dos risos de um passado tão próximo, dos abraços, dos beijos, do “todos unidos”, ficam sem sentido. Ou perdidas numa realidade paralela. Tenho a impressão de que, se eu pular para o lado, vou cair num outro espaço que nem sei dizer se seria o que minha alma diz que poderia ser...
Na verdade, em dias de chuva, não sei onde estou. E se existe algum lugar mesmo. E é tudo tão opaco. E eu não estou. Nem sou. Não existo. E nem me sinto...
(Adriana Luz)