Mulher não deve jogar futebol
Camila demonstrou personalidade forte e agressiva desde que se entendia por gente.Aos 2 anos,qualquer outra criança que fosse obstáculo à sua vontade era beliscada, mordida, agredida de todas as formas possiveis.
Num domingo, eu que era conhecido da familia de Camila estava no jardim com as crianças.Preferia a companhia delas, pois o nivel intelectual das conversas geralmente era mais alto do que a maioria dos adultos.
O primo da menina, alguns meses mais velho, trouxe uma bola de plástico, soltou o brinquedo no chão e desajeitosamente começou a chutar.Camila tambem quis brincar ...
-Mulher não pode. Disse autoritariamente o menino com a bola na mão
-Pode sim. Disse ela partindo pra cima
Os dois agarraram a bola, puxa de cá, puxa de lá, uma mordida, uma marca e o garoto saiu chorando em direção aos familiares.Camila levou uma bronca, ficou de castigo pela mordida e ouviu vários "mulher jogando futebol é feio" da parentada toda.Fiquei satisfeito ao olhar para o quarto e não ver na criança aquele olhar de conformismo diante da "verdade".
Eu não a via frequentemente,mas geralmente ela estava levando repreensões fortes por conta do comportamento inadequado, tudo claro com uma forte dose de moral arcaica.
Cerca de alguns meses depois eu estava na casa dos pais de Camila de novo, novamente junto às crianças.A menina estava escorada à parede conversando com uma prima sua cerca de um ano mais velha.De repente o primo, aquele mesmo, saiu de casa com a bendita bola e começou a brincar.Pensei: CONFUSÃO.Entretanto, para a minha surpresa Camila continuou conversando com a prima.
Curioso, aproximei-me e perguntei:
-Você não vai jogar bola?
-Isso é pra menino. Respondeu como se dissesse a coisa mais óbvia do mundo.
Meditei por um instante e em seguida tentei convencê-la, exaustivamente, de que as coisas não eram exatamente do jeito que ela estava "pensando", mas é dificil argumentar contra algumas pérolas da sabedoria humana.A garotinha me olhava como se eu dissesse que 2+2=5 e estava começando a ficar nervosa comigo.Percebi que a coitada da minha filosofia e o meu metódo pedagógico não funcionariam contra 24 horas por dia de tradição e verdades absolutas.
Desapontado desisti, era uma batalha perdida.Camila havia aprendido definitivamente que mulher, menina, jacaré fêmea, vaca ou qualquer ser do gênero feminino não deve jogar bola.Para que essa experiencia tivesse um lado bom,algo como um consolo, bolei um novo provérbio: Contra ignorância não há argumentos.