O movimento internacional contra as coisas-lixo ("junk things")

O MOVIMENTO INTERNACIONAL CONTRA AS COISAS-LIXO ("JUNK THINGS")

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 18.04.12)

A partir de um desconforto crescente, a ideia surgiu recentemente na velha Albion, o nome que teve em tempos remotos a ilha da Grã-Bretanha, assim batizada talvez pelo aspecto que causavam aos argonautas, à entrada Sul do território, os penhascos escarpados de Dover, que caem na vertical, branquíssimos, direto sobre o mar. O estopim da causa foi o tema da obesidade: "48% dos homens e 43% das mulheres do Reino Unido serão obesos em 2030".

Não só lá, cá também.

Cá: "No Brasil, 40% da população está acima do peso. Estudo recente realizado pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia revelou que 15% das crianças brasileiras são obesas." Há quem diga, porém, que a situação tupiniquim seja muito mais lancinante:

"Segundo dados da pesquisa Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), do Ministério da Saúde, divulgados no dia 10 de abril do corrente, o número de brasileiros acima do peso passou de 42,7%, em 2006, para 48,5%, em 2011. No mesmo período, a proporção de obesos aumentou de 11,4% para 15,8%."

Lá: num manifesto velado em que abordam o aspecto mais "nobre", ou mais passível de aceitação, do movimento, "cirurgiões, psiquiatras, pediatras e médicos de todas as especialidades do Reino Unido lançaram neste domingo, 15 de abril, uma campanha contra a obesidade e centraram suas críticas às empresas de "junk foods" (comidas-lixo, em livre tradução). A Real Academia das Faculdades de Medicina do Reino Unido, que representa cerca de 200 mil dos profissionais do país, pediu a proibição de marcas como McDonald's e Coca-Cola patrocinando eventos esportivos como os Jogos Olímpicos e que famosos façam propaganda de comidas que não são saudáveis para as crianças."

A proposta do movimento, em suma, é bastante simples e eficaz: que se crie um suculento "imposto sobre a gordura", ideia surrupiada de alguns países escandinavos que já a aplicam, no sentido de inibir o consumo de produtos não saudáveis. A fórmula é conhecida: mais tabaco, mais álcool, mais sódio, mais colesterol, mais açúcar ou mais gordura = mais imposto.

A gordura é apenas a parte visível do "iceberg", para usar uma imagem batida e desgastada que volta à tona por ocasião das celebrações do centenário de naufrágio do Titanic. O objetivo, depois, é mobilizar os povos do planeta contra todas as coisas cujo consumo faz um mal danado à saúde, ao bom senso, à inteligência e à sanidade das pessoas. Passaremos então para as fases de combate às músicas-lixo ("junk musics"), com perdas enormes, no Brasil, para a indústria dos sertanejos, sertanejos-universitários, axés, pagodes e gêneros afins. Em seguida, entrarão na linha de fogo as propagandas enganosas ("junk marketing", o lixo da publicidade), com a quebra de milhares de publicitários maiores e menores ao redor do globo; os políticos que já deveriam ter sido expurgados da vida social ("junk politicians", os políticos-lixo, espécie da qual todos nós conhecemos ao menos uma vintena de espécimes); os malditos livros-lixo ("junk books"), a fim de isolar do mundo todas as obras, no sentido de obrar, defecar, de autores de "bestsellers" que só fazem mal à saúde; e assim por diante. A lista vai longe, podemos bem imaginar o seu incomensurável tamanho.

Por fim, alçaremos o topo, o máximo, a purificação santificante: combateremos e eliminaremos do alcance dos olhos os "junk people", a gente-lixo que, claro, não vale nada.

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados.

"Não podemos fazer o que for necessário. Temos que fazer o que for certo."

Gary Bostwick, advogado, citado por Janet Malcolm em "O Jornalista e o Assassino".