MARINHEIRO SÓ...*

Na semana passada, mais precisamente na quarta-feira, indo passar a Semana Santa na capital da Paraíba, para aproveitar os quatro dias que teria pela frente, levei comigo o livro “Marinheiro Só”, de Cláudio Guerra.

A escolha não foi aleatória, confesso. Antes eu já o havia levado para o Rio – este ano –, porém, por motivos que não tive como reverter, não o li. Assim, para não ter que adiar mais ainda a leitura e, principalmente, para acabar com a curiosidade que o livro estava me despertando, disse para mim mesmo que da Semana Santa não passaria.

Para isto, tomei algumas providências – que achei necessárias – para que nada pudesse me afastar da prazerosa leitura do mesmo: deixei na minha residência o notebook e não levei o violão. Os dois são inseparáveis companheiros de viagem, quando vou visitar os meus filhos, mas, de certo modo, encurtam o tempo que disponho, durante o dia, para o exercício da reflexão.

Na quinta-feira, então, rede armada na sala, janelas e portas abertas, o vento correndo encanado pelos corredores do prédio onde se localiza o apartamento, eu abri o romance que havia levado e que chegou de forma inusitada às minhas mãos: David de Medeiros Leite, amigo e escritor, para me fazer uma surpresa – ou me deixar com medo mesmo –, simplesmente o jogou na área da minha casa, logo cedinho, guardado dentro de um envelope, que eu encontrei quase embaixo do automóvel. Um jeito diferente de me apresentar ao autor. Contudo, levando em conta que dificilmente nos encontramos para um bate-papo, até que gostei de como ele me foi enviado.

Comecei a lê-lo. Já no primeiro capítulo, o palco se abre – para quem tem mais de cinquenta anos – e os personagens dos que viveram a Ditadura Militar vão desfilando em sua imaginação, à medida que as páginas vão sendo devoradas. Sim, devoradas! A linguagem utilizada pelo autor nos prende e – o que é melhor – nos leva para dentro do seu livro. De repente, tornamo-nos personagens.

A história, em si, é um relato fiel dos acontecimentos que se passaram na vida do casal José Manoel e Geni, como se conheceram, seu namoro e casamento. No meio disso tudo, os ideais de liberdade e conquista – sonhados pelo cabo José Manoel e os seus companheiros da Marinha –, a opressão por parte do almirantado, a repressão com o Golpe de 64 e o início de uma vida na clandestinidade.

O livro todo é uma aula de história e, como bem frisei no início, quem tem mais de cinquenta anos se emociona com o pano de fundo, que se parece com várias histórias contadas (e vividas) por outras pessoas, outras famílias.

O autor, fundamentado em documentos e em dezenas de livros sobre o período – desde um pouco antes da Ditadura Militar –, narra os acontecimentos que levaram ao Golpe de 64, com a queda da João Goulart, a resistência de Brizola no Sul e o exílio dos mesmos no Uruguai. Mas o documento mais importante, para o romance, é o depoimento da própria Geni que, segundo o autor, mesmo reabrindo feridas, aceitou contar a sua história, ou melhor: a história do seu marido, o cabo paioleiro da marinha, sediado na Ilha do Governador – Rio de Janeiro, para onde Geni se mudou, com ele, depois que se casou. Entretanto, a história do seu marido se materializa em sua história, pois, mesmo sem saber muito sobre o que estava acontecendo, acaba participando – como vítima – das atrocidades cometidas pela cúpula do Regime.

O livro traz, ainda, passagens de vários personagens que fizeram parte da vida pública dos anos 60, 70, 80 e 90; dentre eles, algumas figuras políticas do nosso estado, com relatos surpreendentes – para quem ainda não bebeu de uma fonte alternativa sobre este período.

Quando o autor fala sobre Natal, precisamente a Avenida Rio Branco – Cine Rex, ele me fez lembrar que, um pouco mais para frente, quase no início de sua subida, ficava o Centro Nacional de Informação do Exército, local aonde eu, cabo das Forças Armadas – tendo como mãe a “Pátria” –, tinha por obrigação ir, todos os dias, deixar a esposa de um tenente que trabalhava lá. Um dia, por curiosidade, estando sozinho na minha Companhia, entrei no gabinete do capitão da mesma e, abrindo a sua agenda, vi o meu nome nela. Estava escrito: cabo + (mais) – (menos) implicado. O que aquilo significava até hoje não sei. Só sei que, no reengajamento, eu não fui aceito.

O personagem José Manoel foi mais uma vítima da repressão que se instalou no período de 64 a 78 (apesar de a passagem deste período ter se dado apenas em 85), quando quem mandava no país eram os capangas do Fleury (DOI/CODI), que infiltrava agentes em tudo quanto era repartição pública e cujos métodos “persuasivos” não variavam nunca.

O livro nos mostra o porquê da luta armada, por parte da esquerda, não ter dado certo: não havia uma organização, um planejamento. Tudo que havia eram ideais voluntariosos, marcados pela traição dos próprios companheiros, estes, do início das batalhas. Assim – e por causa dessa desorganização ou falta de uma unidade – se deu, de forma amarga, o desfecho na vida de José Manoel e Geni.

Outra vez reporto às minhas lembranças: agência do Banco do Brasil, um funcionário de nome Luiz foi denunciado por um companheiro (agente infiltrado), simplesmente porque falou uma piada sobre a Ditadura Militar. Virou subversivo. Foi levado para Fernando de Noronha e obrigado a ficar vários dias, em pé, amarrado pelos braços, com água salgada até a cintura, nada revelou. Não tinha o que revelar. Não satisfeitos, os policiais do Fleury trouxeram a sua esposa à sua presença. Estupraram-na (tal qual conta o livro com a personagem) na sua frente. Mataram-na. Ele? Pau de arara e choque elétrico (tal qual conta o livro com outros personagens). Quase morreu. Um dia, contando para nós, disse que teria sido melhor ter morrido.

Quando, finalmente, fechei a última página, o dia de sábado vinha terminando. Parabenizei, em silêncio, Cláudio Guerra pela criteriosa seleção dos fatos, pela forma como conduziu o enredo, tornando-o sempre coerente com o parágrafo anterior e – melhor – com um desenho reflexivo consciente da sua importância para os anais de toda uma historiografia recente.

*Cláudio Guerra nasceu em Paraguaçu Paulista e mora, desde 1981, no Rio Grande do Norte. É graduado em História e foi dirigente do Núcleo Sindical dos Bancários e do Partido Comunista Brasileiro em Macau/RN.

 
Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 16/04/2012
Reeditado em 19/04/2019
Código do texto: T3615884
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