Quero voltar como flor


 
A grande vantagem de ser criança é que elas podem falar o que sentem. Os adultos podem até ficar zangados, mas elas não se calam. Brigam pelo que desejam e dizem não ao que não apreciam. No filme “Uma segunda chance”, o filho pergunta ao pai sobre o que acontece depois que a gente morre.

Logo em seguida, ele mesmo responde à sua própria pergunta:

- Quero voltar como flor.



Eu sempre acreditei em algo mais depois que vamos embora. Uma de minhas maiores amigas nos deixou aos quarenta e dois anos, quatro filhos pequenos. Sempre que estou triste, eu gosto de me lembrar das coisas que fazíamos juntas. Por coincidência, o seu nome também era Sonia. Ela me chamava de  Choinha;  dizia que era para diferenciar as duas, que pensavam de maneira muito igual.

Sonia era filha única e durante a adolescência apaixonou-se perdidamente por um comandante de navio, em passagem no nosso estado.  O relacionamento durou pouco e ela teve seu filho e por ele começou a trabalhar muito cedo.



Quando ela chegou ao departamento onde eu trabalhava, logo todos passaram a amar aquela menina de sorriso largo e os dentes mais bonitos que já vi.  Nós nos tornamos amigas, apesar das diferenças de religiosidade. Eu sempre fui muito piegas nas minhas orações e ela era mais pé no chão. Dizia que Deus havia trilhado o caminho de cada um desde que nascemos. Eu não... Eu teimava em dizer que Deus podia dar uma ajudinha de vez em quando.

O tempo passou e ela reencontrou um amigo de infância e, após um rápido namoro, casaram-se. No prazo de exatos três anos, Sonia, que tinha apenas um filho, passou a ter quatro. A menina nasceu pouco tempo depois do casamento e os gêmeos logo em seguida. A vida dela virou de cabeça pra baixo e raramente ela colocava uma roupa diferente; estava sempre de uniforme.


Mudou-se para uma casa bem perto do trabalho, para que pudesse preparar as crianças para a escola na hora do almoço. Mesmo com todas as dificuldades que enfrentava, Sonia entrou para uma Faculdade para melhorar o salário. Eu não tenho vergonha nenhuma de dizer que quem preparava os trabalhos do curso de Pedagogia era eu. E ela aceitava a minha ajuda com muita humildade.

- Se você escrever palavras difíceis, o Professor vai saber que não fui eu... – Dizia.

Uma das coisas que eu fazia questão era repartir tudo que eu tinha com ela. Não comia a sobremesa para que ela levasse para suas crianças. Eu amava aquela menina tão pé no chão e com ela aprendi a ter mais paciência e sorrir muito.


Quando ela estava mais solta, passava batom e penteava os cabelos cacheados e curtos. Era alegre, atenciosa, cumpridora de seus deveres e sua garra e determinação resultou numa casa com brinquedos no quintal, um quarto para casa filho, uma varandinha. Com o tempo, comprou um carro.

- É velho, mas é meu – ela dizia.

As festas de nossa empresa eram ótimas e eu estava sempre com ela, o esposo e as crianças. Nunca vi crianças tão comportadas em toda a minha vida. Eram de uma doçura de dobrar qualquer coração.

Como em todas as empresas, fazíamos check-up anual. Todos ficavam felizes quando voltavam com a carteirinha de “notas de saúde”, como se fosse um boletim de escola. Nós duas não éramos diferentes.

No ultimo exame de sangue que ela fez, naquele ano, fomos buscar o resultado juntas. Ela havia me dito que estava tendo dificuldade de ir ao banheiro, mesmo que tomasse líquidos em grande quantidade. Até a cerveja do final de semana não fazia efeito. Eu peguei o  resultado do exame e fui pesquisando, um por um. Quando cheguei no resultado da creatinina, achei que algo estava errado.



Falei com ela que fosse ao médico amigo nosso, dentro da empresa. Ela foi, meio assustada. De lá, foi encaminhada ao hospital e nunca mais voltou ao nosso convívio. Sonia perdeu a função renal em pouquíssimo tempo. Não se adaptou à hemodiálise e o transplante, tão esperado, foi rejeitado pelo seu organismo.

Perdemos nossa amiga num prazo de poucos meses. Com ela uma parte de mim foi junto.  Ela me dizia, no hospital, com seu chinelinho azul e a camisola branca que nunca vou esquecer:

- Choinha, só fico com pena de ir embora daqui por causa das crianças, tão pequenas ainda. Mas olhe, Deus é tão legal com a gente que Ele permite que nosso corpo descanse, mesmo que soframos demais. Eu não sinto dor, graças a Deus. Menina, não chore, eu vou ficar boa. E se não ficar, prometo que volto como flor. Sua boba!

Para quem acha que estou triste, engana-se. É que eu me lembrei, logo cedo, como eu gosto de flores e uma delas é a minha amiga querida, com certeza.

 
 
Domingo de Nossa Senhora da Penha, abril de 2012
Fotos do jardim de Katherine Elizabeth Scanlon, grande amiga.


Bom domingo!
 
 

Sunny L (Sonia Landrith)
Enviado por Sunny L (Sonia Landrith) em 15/04/2012
Reeditado em 15/04/2012
Código do texto: T3613665