O cão de guarda
O relógio da Matriz anunciava 4 da tarde na Praça do Largo em Itapecerica. O bom senhor da barraca de salgadinhos entendeu que era hora da merenda para o vira-latas que rondava a escadaria da antiga Câmara. Ajeitou no penúltimo degrau um delicioso bauru e ficou cuidando à distância. O bichinho veio ávido e pegou firme com os dentes enquanto uma patinha prendia o lanche para não escorregar dos seus domínios.
De repente, ele parou e deu um passo para trás, mastigando o naco. Que teria acontecido? Ainda falta a metade... Sim, faltava mesmo a metade, exatamente como dissera o bom senhor.
Minutos depois o barraqueiro arriscou: "Acho que ele só queria o hambúrguer. Bichinho exigente esse!" - e pensou em recolher o restante do lanche para a lixeira.
Pensou, porque o vira-latas - agora um feroz cão de guarda - anunciava, entredentes, que ninguém tocaria naquele precioso alimento.
- Ora, ora... Se não quer mais o lanche, por que está rosnando? Outra tentativa de recolher as sobras e a investida da fera foi ainda maior, dessa vez em posição de ataque.
- Então fica aí com essa porcaria, seu ingrato! exclamou o ambulante.
Logo logo apareceu outro vira-latas. Esse meio capenga. Via-se que os anos pesavam muito nas pernas enfraquecidas. E trazia um olhar de quem já tem as vistas bem curtas. Cambaleava. Perdera a elegância típica dos cães. Talvez só lhe restasse mesmo um vestígio de faro. Era assim.
Em sua fragilidade, veio mansamente, deslizando trôpego para o canto engordurado da escada. Ficamos em suspense. Como reagiria a fera? Já alimentada, saciada plenamente, do alto de seu egoísmo, não hesitaria em dilacerar o pobre e cambaleante mendigo. Seria um roubo descarado, ali nas suas barbas. Não, ele não permitiria tal insulto.
...
Foram segundos tensos. Senti acelerar no peito o ritmo do coração. Torci. Deus sabe o quanto torci para que o rabugento e frágil invasor entendesse o risco que corria a tempo de evitar o confronto. Mas não. Ele, com suas vistas curtas, com suas pernas fracas, cambaleante, sem elegância nenhuma, seguia o instinto do faro. E mansamente deslizava para o naco saboroso de hambúrguer.
Eu tinha que evitar o confronto. Saí do banco e dei um passo firme, no propósito de espantar o bichinho e salvar-lhe o coro já coberto de ranhuras e cicatrizes de prováveis embates malsucedidos.
Não consegui dar o outro passo, porque a fera avançou em minha direção e seu latido ecoou pela praça, descendo como um brado retumbante pela ladeira da 13 de Maio.
Latiu seguidamente até que eu recuasse. Percebendo minha desistência, ele se posicionou outra vez ali nas proximidades do lanche, olhando firmemente para a plateia de humanos imbecis.
Ficou a postos. Era um valente e fiel guarda. Ereto sobre as quatro patas e elegante, só deixou seu posto quando percebeu que o velho cão terminara em paz de comer o lanche. Esperou que ele terminasse e saísse dali. Seguiu-o, bem de perto, como se ainda estivesse de serviço. Só bem longe, ali na esquina da Igreja Matriz, é que tomou outro rumo.
Nesse momento, meu coração de poeta ficou tentando entender o que se passara. Será que o lanche seria dado se o velho cão fosse o primeiro a rodear a barraca?
Quantas vezes já não aconteceu conosco, de fazermos média com alguém, atraídos por sua juventude e elegância e de, por contrassenso, sermos rigorosos e intolerantes com os mais velhos e frágeis?
Quem de nós - mais culto ou menos culto, mais nobre ou mais vira-latas - um dia ousou enfrentar aqueles que se julgavam grandes o suficiente para retirar dos menos favorecidos os seus direitos?
Meu coração de poeta continua tentando entender um pouco de tudo o que se passa à minha volta.
São Paulo, 14 de abril de 2012 – 16h05