O Dia que Venci Um Anjo
Mística é a estrada dos pagadores de promessas. São quase 20 km, de um trevo a outro, conduzindo, sobre azulado carpete de asfalto, todas aquelas almas sonhadoras, credoras de si mesmas, vindo a quitar, perante a intolerante divindade, dentro de suas óticas pessoais, débitos contraídos em momentos de dor, de desespero, acumulados nos pontos em que a esperança ameaçava lançar-se do alto dos despenhadeiros, vencida pelo pesado fardo da realidade, ligando a capital política ao centro da fé regional.
Criado fui, dentro dos limites da fé católica. Anualmente, graças em grande parte à existência da morada de uma tia, que se casara com um filho da terra de Trindade, a qual, nos períodos da Festa do Divino, acolhia toda a gentalha de fora - dentre eles: os membros do meu clã familiar.
Não sei contar quantas vezes, sempre aos domingos, mas umas tantas outras aos sábados, era eu obrigado a deixar em casa os brinquedos, nas ruas os amigos, e seguir, junto aos familiares, naqueles cortejos, para testemunhar, somado a milhares de outros, novo advento ilustre, no qual as promessas eram atendidas e os milagres se multiplicavam em uma sucessão sem fim, criando em torno da pequena cidade uma áurea santificada, na qual eu podia ver e sentir as centenas de coros de anjos que vinham dos céus despejar sobre a multidão as promessas de vida, paz e bem-aventurança.
Não ousava, na primaveril jornada de minha vida, apor qualquer constrangimento à fúria daqueles rituais. Tudo era santo, divino e maravilhoso. Importava-me, no entanto, sem adornar-me com qualquer outra máscara, não a pureza dos cânticos ou a fibra viril dos sermões, de lado ficava toda a liturgia, o que me empolgava eram as centenas, talvez milhares, de barracas que de um tudo vendiam.
Eu, na deliciosa fase do tudo pode porque tu és pequeno, colhia dos parentes todos os trocados possíveis, somados aos que eu mesmo acumulava, para adquirir os mais variados brinquedos, que naqueles tempos podia-se comprar. Dentre eles, o que mais me encantava era uma vaquinha, de plástico, presa por fios de nylon sobre um barril de madeira, com um tampo sobre a mesma, que fazia-a dançar, quando movíamos o tampo. Procurava também os carrinhos, os heróis de brinquedo, e qualquer outra novidade que por lá invocasse de surgir.
O circo, as barracas de tiro, as armadilhas do jogo de argolas, nos quais mais se perdia que vencia, já atestavam que eu vim ao mundo em sobra com as vertentes de um profano, e em falta com as virtudes de um sacristão. Que as rezas, prendas e orações passassem ao largo, o que eu queria era a diversão. Hoje, mais maduro e experiente, percebo que muitos dos que ali se aglomeram, são movidos ao evento por motivos outros, deixando passar a intenção religiosa, que se converte, para muitos, em oportunidade de renda e diversão.
Somente cismei uma vez, quando depois de uma crise de virose, ou de qualquer outra coisa, minha santa avó materna fez uma promessa, em troca de minha cura, para que eu percorresse todo o trajeto entre as duas igrejas da cidade, algo em torno de 3 km, vestido de anjo e descalço. Dias de tortura os que antecederam a festa. Minha mãe tentava por todos os meios convencer-me a não quebrar o acordo, o trato com o Divino, pois senão voltava o mal, que me vitimara, e que eu nem mais me recordava de haver tanto me incomodado. Não queria ir naquele dia, perdi na rebeldia e viajei, determinado a não me vestir de anjo, visto ninguém merecer sujeitar-se à intensidade daquela humilhação.
Durante o almoço de família, e por toda a manhã, me azucrinavam com a idéia de vestir-me de anjo. Olhei com ódio mortal a fantasia que me arrumaram. Recusei-me sequer a experimentá-la. Em consolo, para a minha avó, minha mãe azeitava o azedume que eu espalhava:
- Na hora, na hora mesmo ele vai vestir, não é meu filho? E eu, com aquele ar de gato escaldado, não respondia e nem negava, fugindo ao olhar de minha avó, que fez o trato e, para mim, que ela o cumprisse.
Para minha angústia, a hora foi-se aproximando. Minha avó, temerosa de que ali mesmo um raio me fulminasse, e de que todo o mal voltasse, ficava em agonia. Parentes desconhecidos, primos, tios e até minha mãe, todos queriam que eu vestisse os trajes:
- Eu morro, mas não visto, e ainda descalço. Nunca, nunca e nunca.
Cruzei os braços e sentei ao chão. Minha resistência era brava, corajosa, inquebrantável. Minha mãe querendo salvar as aparências, tentava contornar:
- Mas pelo menos você vai à procissão, não vai?
- Vou, mas vestido de gente!
- E vai descalço? E eu me lembrava daquele chão sujo, que as pessoas imundas, de todos os cantos do Brasil pisavam e cuspiam e dizia que não; descalço eu não iria.
- Mas vai segurando uma vela, não vai? Como muitas crianças o faziam, decidi aceitar.
Na saída para a procissão ainda dei uma olhada, para o traje de anjo, que estava pendurado em um cabide, no gancho destinado a uma rede. Senti naquele momento um orgulho tremendo de mim e da minha força. Eu venci o mundo, eu venci o anjo...
Mística é a estrada dos pagadores de promessas. São quase 20 km, de um trevo a outro, conduzindo, sobre azulado carpete de asfalto, todas aquelas almas sonhadoras, credoras de si mesmas, vindo a quitar, perante a intolerante divindade, dentro de suas óticas pessoais, débitos contraídos em momentos de dor, de desespero, acumulados nos pontos em que a esperança ameaçava lançar-se do alto dos despenhadeiros, vencida pelo pesado fardo da realidade, ligando a capital política ao centro da fé regional.
Criado fui, dentro dos limites da fé católica. Anualmente, graças em grande parte à existência da morada de uma tia, que se casara com um filho da terra de Trindade, a qual, nos períodos da Festa do Divino, acolhia toda a gentalha de fora - dentre eles: os membros do meu clã familiar.
Não sei contar quantas vezes, sempre aos domingos, mas umas tantas outras aos sábados, era eu obrigado a deixar em casa os brinquedos, nas ruas os amigos, e seguir, junto aos familiares, naqueles cortejos, para testemunhar, somado a milhares de outros, novo advento ilustre, no qual as promessas eram atendidas e os milagres se multiplicavam em uma sucessão sem fim, criando em torno da pequena cidade uma áurea santificada, na qual eu podia ver e sentir as centenas de coros de anjos que vinham dos céus despejar sobre a multidão as promessas de vida, paz e bem-aventurança.
Não ousava, na primaveril jornada de minha vida, apor qualquer constrangimento à fúria daqueles rituais. Tudo era santo, divino e maravilhoso. Importava-me, no entanto, sem adornar-me com qualquer outra máscara, não a pureza dos cânticos ou a fibra viril dos sermões, de lado ficava toda a liturgia, o que me empolgava eram as centenas, talvez milhares, de barracas que de um tudo vendiam.
Eu, na deliciosa fase do tudo pode porque tu és pequeno, colhia dos parentes todos os trocados possíveis, somados aos que eu mesmo acumulava, para adquirir os mais variados brinquedos, que naqueles tempos podia-se comprar. Dentre eles, o que mais me encantava era uma vaquinha, de plástico, presa por fios de nylon sobre um barril de madeira, com um tampo sobre a mesma, que fazia-a dançar, quando movíamos o tampo. Procurava também os carrinhos, os heróis de brinquedo, e qualquer outra novidade que por lá invocasse de surgir.
O circo, as barracas de tiro, as armadilhas do jogo de argolas, nos quais mais se perdia que vencia, já atestavam que eu vim ao mundo em sobra com as vertentes de um profano, e em falta com as virtudes de um sacristão. Que as rezas, prendas e orações passassem ao largo, o que eu queria era a diversão. Hoje, mais maduro e experiente, percebo que muitos dos que ali se aglomeram, são movidos ao evento por motivos outros, deixando passar a intenção religiosa, que se converte, para muitos, em oportunidade de renda e diversão.
Somente cismei uma vez, quando depois de uma crise de virose, ou de qualquer outra coisa, minha santa avó materna fez uma promessa, em troca de minha cura, para que eu percorresse todo o trajeto entre as duas igrejas da cidade, algo em torno de 3 km, vestido de anjo e descalço. Dias de tortura os que antecederam a festa. Minha mãe tentava por todos os meios convencer-me a não quebrar o acordo, o trato com o Divino, pois senão voltava o mal, que me vitimara, e que eu nem mais me recordava de haver tanto me incomodado. Não queria ir naquele dia, perdi na rebeldia e viajei, determinado a não me vestir de anjo, visto ninguém merecer sujeitar-se à intensidade daquela humilhação.
Durante o almoço de família, e por toda a manhã, me azucrinavam com a idéia de vestir-me de anjo. Olhei com ódio mortal a fantasia que me arrumaram. Recusei-me sequer a experimentá-la. Em consolo, para a minha avó, minha mãe azeitava o azedume que eu espalhava:
- Na hora, na hora mesmo ele vai vestir, não é meu filho? E eu, com aquele ar de gato escaldado, não respondia e nem negava, fugindo ao olhar de minha avó, que fez o trato e, para mim, que ela o cumprisse.
Para minha angústia, a hora foi-se aproximando. Minha avó, temerosa de que ali mesmo um raio me fulminasse, e de que todo o mal voltasse, ficava em agonia. Parentes desconhecidos, primos, tios e até minha mãe, todos queriam que eu vestisse os trajes:
- Eu morro, mas não visto, e ainda descalço. Nunca, nunca e nunca.
Cruzei os braços e sentei ao chão. Minha resistência era brava, corajosa, inquebrantável. Minha mãe querendo salvar as aparências, tentava contornar:
- Mas pelo menos você vai à procissão, não vai?
- Vou, mas vestido de gente!
- E vai descalço? E eu me lembrava daquele chão sujo, que as pessoas imundas, de todos os cantos do Brasil pisavam e cuspiam e dizia que não; descalço eu não iria.
- Mas vai segurando uma vela, não vai? Como muitas crianças o faziam, decidi aceitar.
Na saída para a procissão ainda dei uma olhada, para o traje de anjo, que estava pendurado em um cabide, no gancho destinado a uma rede. Senti naquele momento um orgulho tremendo de mim e da minha força. Eu venci o mundo, eu venci o anjo...