Cúmplices de viagem II
(Prezado Recantista, há leitura não obrigatória, porém elucidativa, do texto abaixo: Cúmplices de viagem, disponível em http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3214693)
O casal de namorados do ônibus universitário voltou a confranger meu coração: brigaram.
Aparentemente, a falta de jeito dele em abraça-la vezes sem conta e atabalhoadamente (como o fazem certos rapazes) causou estrago nos óculos dela, que já havia lhe pedido cuidados quanto a isso; ante a reincidência, perdeu a paciência e o bom humor. Depois da bronca, ele encolheu-se emburrado a um canto, ela torceu a cara para outro lado e o estrago estava feito.
Sou dependente de óculos. Sei o quanto custam e como é complicado mantê-los em condições adequadas de uso. Além disso, os materiais e formas da armação e a composição das lentes parecem ser incompatíveis uns com outros e com o formato que cai melhor em meu rosto; se – após muitas experimentações e por quase ato divino – o conjunto se harmoniza, persiste entre este e meu bolso uma irritante incongruência. Então, há que se ter zelo com óculos, sim.
Mas me perguntei: ela teria pedido cuidados quanto a mentiras e traições? (alguns rapazes fazem isso, também...). Preocupo-me, idem, com as outras descortesias, como combinar um evento e não cumprir – e não por motivo de força maior, mas falta de consideração, carinho, respeito, vontade... (e muita gente age assim, eu sei.)
Do meu insignificante canto de observadora dos arrulhos, rusgas e arroubos dos outros, questionei-me de novo: o que 'vontade' tem a ver com 'amor'? Se este é incontrolável – assim o dizem literaturas, músicas e outras artes, entre as quais a vida – no que a segunda pode intervir?
Concordando que 'amor' é onda gigante, erguida meio irracionalmente de plácido, imenso e raso leito – e que afoga marujos e sereias e mariscos, sem distinção ou privilégios; que, em infértil e volátil areia, sepulta promessas vãs e preserva tesouros de estanho; que faz revirar na espuma vestes de mendigos e dançarinas, moedas com a cara dourada de reis, reis coroados ou carecas, príncipes em bustos de mármore e seus cavalos e seus estábulos; que ruge silenciosamente sua cantiga, em harmonia com o tempo, até o fim dos tempos – enfim: uma onda de plena iniquidade! – pretende-se que a ‘vontade’ – desavisada, ingênua, até – comporte-se como o quê? Uma espécie de heroína, por certo! E que armas ela poderia deter?...
(Boa parte das pessoas que conheço faz o que atina ser correto a partir de sua vontade de acertar – para as boas coisas, para o bem, para a paz; para atender uma necessidade, cumprir uma missão, sentir prazer além do sensorial. Parcela significante de pessoas (umas conheço bem) faz o que lhe dá na telha, sem se preocupar com as consequências. Vontade de fazer o certo é raridade.)
Enquanto os briguentos continuavam em cantos opostos fiquei pensando: sendo madrinha da ‘vontade’, eu lhe daria um escudo de matéria translúcida e blindada de forma a envolvê-la como uma armadura (feito aquela roupa alienígena do Homem Aranha); soprar-lhe-ia sabedoria para discernir o que perder e o que ganhar - encasulada, protegida, ela saberia, finalmente, do que valeria a pena se defender. Dar-lhe-ia ainda uma lança com ponteira encantada, para atingir fatalmente certos seres sobrenaturais: lobisomem e esperança vêm do mesmo lugar, quem sabe...
E – definitivamente, não! - não lhe daria mais coisas em que pensar: qual o limite do amor? A ingratidão perde a afeição? (eis um dito, por nossas plagas nordestinas) Qual o sentido de olhares compridos e agoniados sobre o amor dos outros? Eles farão as pazes?
Outra incerteza se agitou: por longos quinze minutos, houve uma contenda entre duas de mim: desejo de beber os beijos e abraços e carinhos que pareciam sobrar dos dois, não fora a briga (eu lembrava mesmo da outra viagem!) e perfeito alívio em não me embriagar daquilo.
Segurei minha onda... Esperei.
O rapaz se reaproximou e tirou delicadamente os óculos do rosto da moça: ela os colheu dos dedos morenos e guardou o móvel da discórdia no bolsinho da mochila. O abraço veio suave, os rostos se achegando, alinhando testas, narizes, hálitos... Não houve (ao menos ouvidos por mim) pedidos de desculpas; vi dois pares de olhos perdidos, um no reflexo do outro. Perder-se assim tem efeito de perdão, parece...
O restante da viagem foi tranquilo – que nem final de torneio em campo de várzea, quando um time é dono da bola e o outro detém as traves. (E é sempre um jogo: ao final, eu perco – mas nem sempre é uma derrota; talvez seja como achar os óculos perfeitos – bons, bonitos, baratos – e não precisar usá-los.)
Segurar a onda? Esperar?
Afogar-me novamente – ah, quem me dera! – e cantar ‘a palavra que nunca foi dita’.