Crônica de uma enchente (Pequena crônica de terror)
Ela levantou às cinco da madrugada. Tomou banho, se arrumou, mal comeu. Foi pegar o ônibus. Nos bequinhos escuros do trajeto, passos mais fortes são sempre ameaçadores. Teve que correr para alcançar o busão, pois se perdesse aquele, certamente chegaria atrasada. Correu, alcançou, entrou e foi, quase pendurada na porta.
A condução é uma completa mistura de gentes, cheiros, sons... pessoas que se comprimem, mas que animadamente conversam, brincam, brigam, atendem celulares, flertam.
Parece ser impossível caber mais alguém, mas ali o milagre da multiplicação se verifica. Em cada ponto de parada sobem mais passageiros. Feito coração de mãe, sempre cabe mais um.
Chegam ao ponto final. Agora, é pegar o metrô.
Uma fila básica para carregar o bilhete e mais um amontoado diante das portas do trem. Apesar de ser estação inicial, nada parece fácil. Depois de algumas tentativas, ela entra, mas não consegue assento.
Em cada estação, uma pequena multidão se junta aos demais. Teimosamente, ninguém desce antes da estação central. Todos vão se aglomerando como podem, se empurrando, se espremendo, se asfixiando. Todos juntos e misturados como um amálgama, uma compacta massa. A massa! Nunca tantos, tão perto, tão longe...
A mocinha já está cansada e a mochila nas costas com a pequena marmita incomoda a ela e aos demais, que olham aborrecidos toda vez que se sentem incomodados. O protesto nem faz sentido, em meio a tanto aperto.
Já no trabalho, mais um dia difícil. Exploração e humilhação é o que ela vive todo dia. Tem vontade de largar tudo, mas não pode. Seu salário ajuda muito no sustento da família. Sonhos, se teve um dia, nem se lembra mais.
O almoço engolido às pressas, a marmitinha toda misturada, mal requentada – tudo isso cansa e desilude.
Ouve trovões. Um medo assola, um terror ronda a todos na empresa. Já é sabido que, se desabar temporal, vai ter enchente em pleno outono.
O expediente acaba. Hora de voltar pra casa, repetir a saga do sofrimento diário diante de transporte público tão ineficiente.
Mas o que já estava difícil fica ainda pior.
Alagadas, várias ruas principais fazem o trânsito parar de vez. Opta pelo trem, já que o metrô mais próximo está com acesso complicado. Ela e metade da cidade tiveram a mesma “opção”. O trem agora é algo que só quem já comeu sardinha em lata, pode compreender. E ainda, tudo regado a 'funk' e axé.
O retorno, que podia durar 1 hora e meia, já dura 3 horas.
Em casa, sua família vê no jornal as notícias da enchente que provocou recorde de congestionamento na cidade. Preocupados, eles tentam contato com ela. O celular não responde, está fora de área.
Pelo menos ali na Z.L. não teve enchente.
O trem para o tempo todo, a paciência já parou faz tempo. Depois, ainda tem o ônibus. Nova maratona se segue. Bem mais tarde, ela chega ao seu destino.
Está toda ensopada, passou por enxurradas, equilibrou-se onde e como pode e driblou a morte. Num dos momentos mais trágicos ela notou insetos nojentos boiando na água fétida que agora chegava à altura dos joelhos e viu uma senhora quase sendo arrastada pela enchente, pois pisou de falso em um buraco.
Quando ela chega finalmente em casa, a mãe respira aliviada.Está cansada, faminta, suja e com o corpo dolorido.
Toma um banho, come um pouco e vai dormir.
A mãe coloca sua mochila pra secar atrás da geladeira e prepara sua marmita.
Amanhã é outro dia e a moça do tempo já avisou: previsão de mais um dia de temporais na capital. Certeza garantida de mais um dia de terror.