Impressões infantis
Quando eu era criança , por volta dos dez anos, gostava de comer comprimidos infantis, aqueles rosados e docinhos. Se ganhasse um dinheiro para doces, comprava várias cartelas deles e me sentava sob uma frondosa amoreira e escondida entre suas folhas comia um a um como se fossem balas. Claro que no fundo, apesar da inocência da idade, sabia que era algo errado de se fazer por isso me escondia embaixo da árvore. Eu passava várias horas do dia nesse meu esconderijo secreto não só fazendo coisas erradas, simplesmente gostava de ficar ali. A árvore ficava em um terreno grande com laranjeiras, abacateiros, bananeiras e limoeiros, ao lado havia uma casinha branca com janelas de madeira. Na casa morava uma senhora negra e seus filhos adultos. Um deles estava doente e passava o dia todo na cama. A janela de seu quarto ficava ao lado dessa árvore em que eu sempre me refugiava, seja para comer remédio escondido, seja para ficar a sós comigo mesma, hábito que já fazia parte da minha vida desde a infância e que ainda me acompanha até hoje. Eu me sentava lá e ficava meditando, ás vezes o rapaz aparecia na janela e sorria para mim, eu sorria de volta; e ele sumia para dentro do quarto outra vez. Não sem antes me revelar sem querer sua expressão de dor e cansaço. Cansaço esse que piorava a cada dia, fazendo ele ir e vir do hospital várias vezes. Não faço idéia de que doença ele tinha, mas me lembro sempre dele.
Me impressionava vê-lo se deteriorar e ir perdendo a vida, fato que era evidente a cada tarde em que eu o "visitava".
Em uma dessas ocasiões enquanto eu comia minhas balinhas, vi que ele saiu na janela, mas me ignorou completamente, seus olhos estavam distantes e sofridos, debruçou-se na janela e vomitou um jato de sangue vermelho e vivo, espirrando na parede abaixo da janela. As manchas ficaram lá muito tempo depois.
No dia seguinte eu estava lá novamente, quando a ambulância chegou. Abriram a traseira do carro branco de luzes vermelhas e dois enfermeiros também usando roupas brancas entraram correndo e em seguida, saíram carregando meu amigo em uma maca. Ele vestia só a calça do pijama, seu rosto virado em minha direção, como se me procurasse; mas seus olhos estavam revirados para dentro e ele tremia muito. A ambulância se foi e eu fiquei ali pensando nele, e em como seu olhar estava estranho e distante. Olhei para as manchinhas de sangue ainda vermelhas na parede abaixo da janela, apenas uma lembrança da vida que por alguns meses ele compartilhou comigo.
No dia seguinte ele morreu; e depois disso, quando ia para debaixo da árvore eu ficava olhando as manchinhas de sangue da parede, que dia após dia ficavam mais fracas e apagadas. Aos poucos foram desaparecendo. Eu as acompanhei todos os dias até restar apenas uma tênue sombra das manchinhas que meu amigo deixou alí. Era quase com o se a presença dele fosse desaparecendo junto com elas, porém ele ficou em minha memória todos esses anos. Nunca mais me esqueci da imagem chocante dele na janela jorrando sangue e depois seus olhos revirados em cima da maca indo para morte no hospital. Não sei mais seu nome, por alguns anos sabia inclusive o nome de sua mãe e de seus irmãos, mas agora não me lembro mais. Mas me lembro do sorriso que ele me dava todos os dias e das manchinhas de sangue na parede.