O anúncio de uma saudade
Pela janela do banco de trás do carro, eu só enxergava a poeira levantada daquele pedaço de chão batido esquecido pelo tempo. A cada curva da estrada deserta, eu me aproximava do lugar onde tinha deixado uma parte de mim – sem a qual nunca mais fui a mesma. A beleza da paisagem e dos campos que se estendiam pela imensidão do horizonte contrastava com a angústia de retornar àquele lugar, que desde 2008 não me convencia a fazer uma visita.
O pretexto foi a data simbólica, que, para mim, não representava muita coisa. O Dia de Finados é igual a qualquer outro feriado, desses criados para fazer um agrado aos comerciantes. Desde quando é preciso de um dia específico para lembrar que amamos nossos pais, mães, filhos ou que perdemos um ente querido? Quem foi –o idiota – que disse que saudade escolhe dia para aparecer e que é preciso o 2 de novembro para nos lembrar que aquela pessoa existiu e continua existindo dentro de nós?
Todos esses pensamentos perambulavam confusos pela minha cabeça enquanto eu ia deixando para trás qualquer vestígio de civilização. Até que, em uma das curvas, o carro parou. Era ali. Eu ainda podia reconhecer aqueles portões brancos e o lance de escadas deteriorado pelas chuvas, embora os tivesse visto apenas uma vez, com os olhos embaçados pelas lágrimas de uma perda imensurável.
Quando entrei no cemitério, identifiquei diversas lápides que não estavam ali naquela cinzenta tarde de terça-feira, 19 de novembro de 2008. Isso me fez lembrar nossa vulnerabilidade e impotência diante do mundo: não importa o quanto possuímos ou quem somos, o destino é imparcial. Enquanto caminhava por entre os túmulos, via dezenas de fotos e datas, e me perguntava quem tinha sido cada uma daquelas pessoas. Qual seria a sua história? O que teria feito? O que está escondido entre aquelas datas? Teve tempo de fazer o que tinha vontade? Disse às pessoas que amava o quanto elas eram importantes? Que segredos levou consigo? O que faria diferente se tivesse outra chance?
Enfim, cheguei à lápide que carregava os dizeres que eu mesma escrevi: “Nem mesmo a distância será capaz de apagar o brilho da tua lembrança ou teu lugar em nossos corações”. No canto esquerdo, a foto do meu heroi, meu exemplo, meu guerreiro, meu velhinho que partiu cedo, muito cedo. Não que eu acredite que levar flores ou acender velas vá dizer mais que as minhas palavras e atitudes enquanto ele estava aqui, mas é uma forma de demonstrar que não me esqueço dele e, de certa forma, me sentir mais perto, ainda que separada por uma caixa de concreto.
Depois de alguns minutos, virei as costas e retornei, repetindo o mesmo gesto de três anos atrás: saindo dali com as mãos vazias, um rombo no coração e os olhos inchados de tanto chorar. Tentando, inutilmente, acreditar que aquele era apenas um “até logo” e que, quando entrasse na casa verde de venezianas brancas, ele estaria lá, de braços abertos, sempre pronto para me ajudar ou me ensinar alguma coisa. Sinto falta daquela casa cheia de netos, dos abraços sinceros, dos fins de ano em família com amigo secreto, do lugar reservado na ponta da mesa da cozinha, dos olhos que me fitavam curiosos por trás dos óculos de grau e do boné largado desajeitadamente sobre os fios de cabelos grisalhos. Sinto falta da voz carinhosa, da companhia para os jogos do Grêmio, das piadas, das pescarias, daquele jeito único e especial de chamar meu nome.
São coisas que o tempo levou de mim, e que ele mesmo não me permite esquecer. Aliás, tempo é um conceito extremamente vago quando se fala em perda. Podem se passar meses ou anos, a ferida nunca cicatriza, você apenas se acostuma com a dor que ela causa.Voltando para casa, eu vi o sol se pondo no horizonte, as árvores, as flores, os animais e toda a vida que rodeia aquele lugar. Como já dizia Cazuza, “o tempo não para”. Pessoas chegam e vão embora todos os dias, sem que grande parte do mundo sequer saiba que um dia estiveram aqui. É a lei da vida e ninguém pode mudá-la, não importa o quão imensa seja a vontade de reescrever os rumos da história. Não é possível esquecer o passado, mas é preciso deixá-lo para trás se você quiser ir em frente. E é aí que eu me lembro do sol: por mais que existam momentos de escuridão, ele sempre volta na manhã seguinte.