DDD - Diário de Derrotas [28]
09h15m
Essa é a primeira vez que chego antes do meu horário de entrada no ano, se não me engano.
09h30m
Não tem muito que fazer hoje. Só separar as sessenta notas, lançar a baixa delas em duas ou três planilhas distintas, liquidar cada uma delas e tirar uma, duas ou até três cópias de cada uma, dependendo do mês que elas foram emitidas e se são de reembolso ou de honorários.
Dedico-me às guias.
10h00m
Número da Vara. Dois pontos.
Nome do fórum. Dois pontos.
Autor. Dois pontos.
Réu. Dois pontos.
Ação. Dois pontos.
Número do contrato. Dois pontos.
CPF. Dois pontos.
Inserir CNPJ.
Inserir valor.
Inserir Razão Social.
Inserir número do processo.
Inserir código de recolhimento.
Copiar número da vara.
Copiar nome do fórum.
Copiar nome do réu.
Copiar o tipo de ação.
Copiar o número do contrato.
Copiar o CPF.
Colar número da vara.
Colar nome do fórum.
Colar nome do réu.
Colar o tipo de ação.
Colar o número do contrato.
Colar o CPF.
Olhar tudo três vezes antes de imprimir.
Depois de imprimir, escreva o nome de quem pediu no verso.
Pra não se perder depois. Pra saber pra quem deve entregar.
Pra saber quem vai te comer o fígado, caso algo saia errado.
Coloque as duas folhas (se for Gare; uma só, se for FEDTJ) viradas pra baixo.
Lance no sistema que você recolheu a guia. Senão seu fígado é comido.
Coma o fígado daqueles que não lançarem o pedido do recolhimento no sistema.
Não se acanhe. Pode dar bronca.
Jogue o e-mail na caixa de Guias Recolhidas, para não se confundir.
Vá para o próximo.
Jamais se esqueça de que Agravo de Instrumento pede Porte de Remessa.
Jamais se esqueça que, quando for Carta Precatória, a diligência do Oficial de Justiça é para a cidade requerida.
Caso eles peçam sem informar a cidade, dê bronca.
Caso eles peçam para outro Estado, também dê bronca.
Porque não pode. É só pra São Paulo.
Jamais se esqueça que as Custas Iniciais são calculadas em cima de 1% do valor da causa. Jamais se esqueça que o mínimo são cinco UFESP.
Cada UFESP vale R$ 18,40.
Jamais se esqueçaque Recurso para Apelação é calculado em cima de 2% sobre o valor atualizado da causa. Jamais se esqueça de atualizar o valor da causa. Já pensou, seu fígado ao molho madeira?
Depois que os e-mails acabam, junte todas as guias Gares e FEDTJ's em empilhamentos separados, sempre mantendo a ordem de emissão. Agora você vai cortá-las.
As FEDTJ's são emitidas em três vias, e as três vias vão ao banco. Apenas duas voltam.
As Gares são emitidas em quatro vias, e somente três vão. Apenas duas voltam.
Atenda o telefone.
Corte com a régua.
Não se queixe da dor no pulso. Apenas corte.
Não ligue para a irritação por ficar olhando o papel branco refletindo a luz do sol no seu olho fotofóbico. Apenas corte.
Depois que tudo estiver cortado, grampeie.
Mas grampeie prestando atenção.
Se autenticarem a guia errada, você está mais perdido do que já está.
Atenda o telefone.
Depois que tudo estiver grampeado, deixe-as arrumadas de acordo com a ordem de chegada do e-mail, e de acordo com a ordem delas no e-mail. Porque facilitará pra moça do setor de contas a pagar na hora de fazer a soma e preencher o cheque.
Emita o boleto com urgência.
Depois de tudo conferido, dependendo do horário, segure-as mais um pouco com você.
Porque se você passar pro setor de pagamento e o cheque for preenchido, e alguém ligar pra você pedindo urgência em algo com prazo fatal de 48 horas estipulado por um juiz folgado, e esse prazo for pro beleléu, a culpa é sua.
Portanto, espere.
E atenda o telefone.
13h20m
Combinei de almoçar com uma amiga e ela não aparece. Entro no restaurante que combinamos, e está lotado, e acho tudo muito caro. Vou a um outro e acho muito cheio, e caro.
Entro nesse outro com garçonete peituda decotada cheirando a gordura e piscando pra você com uma caneta atrás da orelha e só consigo sentir sono.
Sento no que me dá azia, que vem suco errado, que a comida tem salitre e que o garçom vira e mexe derruba feijão na minha roupa.
Como olhando a fachada de uma Igreja com dizeres em Latim.
Como olhando os mendigos e os bêbados.
Os punks que ficam na frente do mercado.
Depois de tanto glamour e ideologia foi isso o que sobrou do movimento.
Apenas mastigo, só pensando num banheiro que me propicie a privacidade da qual estou necessitando no momento.
16h00m
Não consigo acreditar que não tenho nada pra fazer. Estava com saudades dessa sensação; de ficar aqui sentado bocejando e sentindo tédio.
16h02m
Só que o problema de NÃO TER nada pra fazer - por ser um funcionário meticulosamente ágil, que só abre a boca muito a contragosto - é que, para os outros, você NÃO FAZ NADA. Só que vai explicar pros caciques que o NÃO FAZER NADA É CONTRAPRODUCENTE; vai explicar analogamente que se você ficar o dia inteiro parado num ponto de ônibus sem esticar o braço, por exemplo, ele não vai parar. Vai querer explicar que se você não faz nada, todo o sistema intrínseco que uma empresa é fica corrompido, fica com uma fresta por onde escoará prejuízo e morosidade na entrada de dinheiro.
Vai lá.
16h05m
Estou a caminho de um cliente que fica a uma estação de Metrô do escritório, indo levar uns documentos corriqueiros. Percebo que é a terceira terça-feira seguida que sou despachado pra rua na mesma hora; e que é a terceira terça-feira seguida que começa a chover assim que eu atravesso a Paulista e fico longe dos guardas-chuvas que temos à disposição.
Está rolando esse negócio da Starbucks comemorar não sei o quê distribuindo bebida de graça. Eu lembro disso, a caminho de uma. Só que eu não esperava tanto passa-fome feito eu fazendo uma fila gigantesca. Eu pensei que essa galera chique e diferenciada que costuma usufruir das iguarias da tal espelunca não se sujeitasse ao jugo da pobreza assim, tão facilmente, e que eu me depararia com uma fila razoável.
Passo numa bomboniere e compro uma almofadinha de doce de leite que custa irrisórios R$ 0,40, pra compensar o tolhimento do drink da Starfucks.
Passo direto, debaixo de chuva, protegendo os documentos sob a camiseta, não infeliz, nem feliz. Apenas automatizado e insensível.
16h35m
Estou diante dessa janela enorme do vigésimo primeiro andar. O MASP esta ali, logo abaixo, e as pessoas parecem formiguinhas. Há um heliponto no prédio à frente. Do meu lado direito há o Jardins e o Parque do Ibirapuera. Se eu abrir essa janela e pular, já era. Mas apenas tiro uma foto focando uma gota que não aparece e vira um borrão, aperto o botão do elevador e desço os vinte e um andares em poucos segundos.
17h10m
De volta ao escritório, ainda sem nada pra fazer.
18h10m
A má notícia do dia tardou, mas veio, como de praxe: uma planilha que me carcomeu o cérebro para preencher e mandar pra outra empresa, com todos os honorários que ela deve pagar detalhadamente discriminados, foi preenchida de maneira incorreta, segundo eles. Que, segundo informação inicial deles, era a maneira correta.
Terei que passar mais uma semana com a cara enfiada em células verdes e em três telas do sistema lento que eles disponibilizaram para que fizéssemos o serviço direito.
19h20m
Queria morar no apartamento que a velha que estava com o cachorro nas costas e que tirei uma foto bonita entrou.
5 minutos daqui, sob a chuva. Chegar e tomar um banho e esticar as pernas.
Realidade: dois metrôs, um trem e uma lotação.
Depois de uma aula que remete totalmente à faculdade que abandonei dois anos atrás.
Que vida...
10/04/2012