Nos Gonçalves, como em toda a Mantiqueira, as mesas dos botecos são de tábuas lavradas a enxó, grossas, desiguais, as ferpas, antes eriçadas e machucadoras, agora escondidas e apaziguadas sob camadas de gorduras de torresmos, lingüiças, beiços de porco, mortadelas e outros tira-gosto.
      O tampo, polido por mãos trêmulas e cotovelos pensativos, é estampado com desenhos entrelaçados de fundo de garrafa, riscas de prato arrastados e marcas de cachaça, escorrida. Num canto, esculpido a canivete, para não fugir à regra do amor, um coração cambaio carregado com dois nomes, a flechinha atravessada, furando os amantes e derramando duas gotas: uma, de sangue; outra de pinga Amélia ou Moreninha. Debaixo da mesa, bem mascados e grudados, chicletes de segunda boca e protegidos, porque, quem sabe, amanhã a gente volta.
Toda tardinha, momento consagrado ao aperfeiçoamento do ócio, as mesas  estão prontas para ver e ouvir coisas “que até Deus duvida”, pois, nas camadas sobrepostas do sebo que são o calendário das mesas da Mantiqueira, haverá páginas relatando tragédias, dramas e comédias (tipo seqüestro da mocinha da serra da Canastra), paixões desatinadas, amores compreendidos e descompreendidos, separações inseparáveis. Tudo regado a lágrimas-flex, tanto de dor como de gargalhada. A dor da promessa não cumprida e a gargalhada do cumprimento espontâneo, sem promessa.
Quanto muito a contragosto, o sol começa a se recolher, as mulheres da Mantiqueira dão início à própria beleza para, acabado o lusco-fusco, ficarem lindas. Em mesa de boteco, toda mulher é, nem que seja obrigatoriamente, linda.. Os homens tornam-se generosos a não mais poder. Beleza, generosidade e paz, já se vê, depende de mesa e copos. À mesa as pessoas tornam-se solidárias, o candidato abraça o filho da mãe que lhe negou o voto, a traída chega ao exagero de pensar em perdão para a “outra”. Quem quiser realmente saber dos segredos da mesa de botequim, com a unha vá esfoliando (eita!) as camadas de gordura sobrepostas e se tiver ouvido apurado a álcool , poderá ouvir camada sob camada a delicadeza provinda de uma roda de violas:”ó linda imagem de mulher que me seduz, ai, se eu pudesse tu estarias num altar” e ao chegar à última colidir com a mais recente :“nossa” assim você me mata, ai, se eu te pego, delícia!”
      Mesas dos botecos da Mantiqueira: acordes de violão, arrotos azedos de pinga amanhecida, murmúrios, chispas de amor, o xiiii da garrafa sendo aberta, a pinga derramada vítima do tremor do calor de joelhos se tocando, enlevo de dedos fazendo catedral de Brasília, o pedaço de torresmo abandonado, o caroço de azeitona rolando... eu dando um jeito de me colocar camuflado, entre as tábuas.
 
* Ferpa= do idioma mantiqueirês para “farpa” e sendo usado na Mantiqueira, deve ser adotado por todos os países de língua portuguesa.