CIDADANIA
Estava próximo de mais uma eleição. As cidades estavam em polvorosa. Por todos os cantos ouviam-se comentários do tipo: hoje à noite os homens virão contar os eleitores e trazer alguns agrados... Coisas assim.
A noite chegou. E com ela vieram os homens. Três lordes, muito bem vestidos, engravatados, com pastas na mão e discurso afiado. Passavam de porta em porta e perguntavam:
- Quantos eleitores moram aí? E o povo respondia:
- Dois, três, cinco...
Eles abriam as pastas, tiravam uns envelopes contendo alguns trocados e umas cédulas (modelo) de votação com a indicação de como e em quem votar, entregavam ao suposto eleitor e prosseguiam para mais uma abordagem.
Próxima casa:
- Quantos eleitores moram aí?
- Oito.
Mais oito envelopes, oitos cédulas. Tudo de uma forma mecânica, automática, tiro certo, cabresto posto, eleitor comprado, político eleito. A peregrinação continuava de casa em casa. A cada passo que avançava, vinha também a certeza do progresso em relação à conquista dos eleitores. Pelos cálculos, eles tinham absoluta certeza de que o "homem" estava eleito!
Um pouco mais de abordagem e os homens chegaram à casa de uma família pobre, cuja luta pela sobrevivência mais parecia uma guerra, considerando que eram inúmeras as dificuldades enfrentadas. Com ares de autoridade, bateram à porta. Saiu uma mocinha, encabulada, com um jeito de gente simples, mas com altivez e serenidade no olhar.
Os homens já nem se davam mais ao trabalho de um "boa noite." Foram logo ao que interessava - a pergunta de praxe:
- Quantos eleitores moram nesta casa?
A moça, que já estava ciente que aquilo era a caravana dos compradores de votos, respondeu:
- São três.
Um dos homens enfiou a mão em uma pasta, tirou três envelopes e os entregou à jovem.
Ela abriu um deles. Viu que havia certa quantia e uma cédula.
Os homens sequer pararam para pedir o voto ou comentar qualquer coisa. Já estavam partindo para outra quando ela os chamou:
- Um momento, por favor! Eu não posso ficar com estes envelopes. Aqui em nossa casa os eleitores votam nos candidatos do partido oposto ao dos senhores.
Eles se entreolharam um tanto admirados. Receberam de volta os envelopes e um deles falou:
- Moça, muito obrigado por sua sinceridade.
E, sem perder a esportiva, partiram para uma nova investida.
O fato que acabei de relatar aconteceu há alguns anos, talvez algumas décadas. O tempo passou, mas, infelizmente, a história se repete. Quem de nós não se lembra de algo parecido? Quem é que já não ouviu falar ou até participou da mercancia dos votos? Quem já não quis ou pensou em tirar um proveito em época de eleição?
Aquela moça, mesmo pobre e enfrentando dificuldades financeiras, soube vencer a tentação e dizer "não" aos compradores de dignidade humana.
É fácil demais cruzar os braços e ver a banda passar. À medida que as dificuldades aumentam nós, os brasileiros, tentamos nos enganar com frases feitas como "eu pago os meus impostos, cumpro as minhas obrigações", e vamos deixando o barco da cidadania avançar para águas mais profundas e perigosas. Assistimos a tudo como se estivéssemos num teatro, na condição de platéia indiferente ou pouco participativa.
E o descalabro avança. Como Nação, perdemos os nossos ideais, a nossa dignidade, nossos sonhos de progresso e de paz para nós e para os nossos filhos. Os nossos idosos estão nas filas dos indigentes. Uma boa parte de nossas crianças, desorientadas, mal amadas e mal assistidas pelos poderes públicos, ao invés de brinquedos, usa drogas; ao invés de pipas, exibe armas. Os nossos jovens, cada dia mais perdidos e entregues à incerteza de um futuro sem perspectivas de empregos decentes com os quais possam se manter e formar as suas famílias, criar e educar os seus filhos com dignidade. Até mesmo aqueles que tiveram a sorte de freqüentar uma boa escola, em face da insegurança, da instabilidade relativa a empregos, muitas vezes deixam a Pátria Mãe e vão tentar a vida em outros países, onde são explorados profissionalmente, quando não confundidos como assaltantes ou terroristas e executados por policiais.
E nós, perdidos como cegos em tiroteio, a pagar impostos e contribuições diversas, cuja parcela maior é para alimentar a máquina pública que está à deriva, perdendo o rumo tal qual um trem descarrilado.
Mas aproximam-se as eleições outra vez. De um modo ou de outro há pessoas pensando em tirar as suas lasquinhas. Há políticos querendo comprar votos e eleitores querendo vender ou trocar por uns favores a mais. Aqueles que dilapidaram o nosso patrimônio, que nos levaram os milhões do mensalão, os sanguessugas, os vampiros e tantos outros mais estão todos na ativa, espertos para abocanhar mais umas fatias de nossos recursos. E, infelizmente, há muitos eleitores prontos para tirar um bom proveito também.
Estamos quites. Uns vendem, outros compram. Fim de trato. Quem vendeu o seu voto jamais terá altivez para cobrar de seus políticos uma postura digna de representantes do povo. Quem comprou o voto também não se sente na obrigação de devolvê-lo em forma de bons projetos, leis, de um trabalho sério em prol da sociedade.
Para o espaço os nossos ideais! O nosso "Gigante" continua dormindo em berço esplêndido, quem sabe, à espera de "uma luz no fim do túnel" que o desperte deste marasmo.
(Matéria reeditada)
Maria do Socorro Domingos dos Santos Silva
João Pessoa,10/04/2012