Amábile, ninguém a conheceu, ninguém a esqueceu

Há pessoas que vivem muito, vivem demais, para poder contar-nos histórias, para nos servir de ponte para um passado que não se registra em livros. Pessoas como Amábile, nascida em 1923, viveu até o mês passado para nos dizer sobre a passagem daquele tempo a esse outro, para nos certificar de que existiu uma época que não voltará mais. Como muitas mulheres, Amábile cresceu com o intuito de cuidar e servir e fora esse seu destino desde pequena, amar e cuidar dos outros. Nascera de pais imigrantes, a mãe portuguesa e o pai italiano, chegaram ao Brasil no início do século XX e foram se estabelecer nas terras do Juquery para trabalhar no hospital do mesmo nome. Contava Amábile que a família da mãe não se adaptou ao Brasil, a vó ficara doente e queria voltar para Portugal ficando o pai e a filha para pagar as suas passagens de volta. Depois voltara o pai seguindo os passos da esposa, porém tivera que ficar a filha sob a tutela do Dr. Franco da Rocha para pagar as passagens do pai. Sua mãe era engomadeira do hospital e trabalhava também na casa do médico, e sendo menor ficou sob a responsabilidade deste como uma filha. Como conseqüência, a mãe de Amábile, dona Beatriz, se apaixonou por um italiano, carpinteiro do hospital, senhor Jaime, e por causa disso não quis mais voltar para Portugal. A família da moça trabalhadora, já toda em Portugal, não queria que ela namorasse Jaime porque por essa razão ela não voltaria à família e ao seu país. Se não fosse a intervenção do Dr. Franco da Rocha , Jaime e Beatriz não teriam se casado e não teriam tido 8 filhos entre eles, a Amábile.

Amábile era a terceira filha do casal, mas sempre se comportou como se fosse a primogênita pelo amadurecimento que sempre se mostrou. Logo a mãe se revelara muito doente e Amábile recém adolescente toma a frente no cuidado com a casa, com os irmãos e no cuidado com a mãe. A mãe morre e Amábile abraça a sua vocação que já nascera com o seu nome, Amábile de amável aquela que ama sem esperar ser amada, ama porque nascera para amar como mulher, como irmã mais velha e como filha. Contou-nos que sua mãe morrera jovem com 37 anos de úlcera, ao contrário de si - mesma que morrera com 89 anos para testemunhar os três tempos, o dos seus pais, o seu e o dos seus netos. Morrera a mãe logo após de ter conseguido terminar a sua casa e de mobiliá-la como queria, fato que mostrou-lhe como a vida é efêmera e como as coisas são perenes e que não se deve se apegar às coisas materiais, porém como é difícil não se apegar à pessoas! Resolveu com 14 anos ser a mãe de seus irmãos menores, principalmente de dois: Donald e Djalma, um com 6 e outro com 3, os quais aprendeu a amar como filhos para que não sentissem falta da sua mãe. Em seguida, seu pai casa com outra mulher e têm outros filhos, estes também não deixam de ser cuidados por Amábile que também os ama muito.

Já moça casa-se e tem uma filha, mas seu marido parte para a Segunda Guerra Mundial na tropa brasileira, e volta para casa muito tempo depois já doente para morrer. Amábile mais uma vez coloca a sua vocação a serviço e mostra seu amor ao cuidar dos últimos dias do marido. Casa-se mais uma vez e com o novo marido tem mais 7 filhos, todos para serem amados e cuidados por ela. Porém, ela não se esquece dos irmãos caçulas guiando e aconselhando-os sempre com todo amor que conseguia transmitir. Para ajudar na criação dos filhos trabalhou em casa como boleira, salgadeira e cozinheira para fora, além de outros afazeres que deve ter praticado quando se é uma pessoa que não espera as coisas cair do céu e quando se tem muitas pessoas que depende de você, do seu amor e da sua doação de vida. Quando idosa, cuida novamente dos netos e dos bisnetos que por ora precisavam, nunca se lamentou com seu destino de ser, porque também a lamentação não lhe fora permitida. Para ela, só existia o ato de amar, esse sim muito maior do que qualquer dificuldade, do que qualquer contratempo ou tristeza e sofrimento. Por isso não sofria, cumpria seu destino de cuidar e servir com maestria e a força de espíritos que vêem para esse planeta com essa missão.

Nunca ligou para o fato de não ter reconhecimento público, talvez porque sua missão de vida se concentrou mesmo no cuidado da vida privada, da família que recebeu e da família que fez, na harmonia do lar. Ficava feliz e orgulhosa do sucesso de seus irmãos, do seu marido e dos seus filhos como se fosse e era, sua obra. Novamente, já bem idosa, quando todos pensam que seu estoque de carinho e cuidado havia se esgotado ela adota uma criança, um menino, o coloca em sua casa como filho. Também começa a ajudar os netos crianças de seu irmão filho Donald que por ora passavam por dificuldades e carências talvez por terem nascidos após a passagem de sua existência e que por ele não fora conhecidos. Mais uma vez, ela ama para nos ensinar a amar de modo fraternal e sem limites de tempo, espaço, idade, etnia etc... E como prova, guardava um álbum de retrato com fotos de seus pais, do casamento deles de 1920, dos seus avós, da revolução de 1932, do seu marido após a Guerra, de seus filhos pequenos, de seus irmãos no serviço público na década de 70, enfim, guardava fotos que comprovavam sua memória histórica apesar de não me lembrar neste álbum uma foto que fosse sua. A foto que mais gostara era um retrato grande de sua mãe, amarelado pelos anos e todo remendado, mas que mostrava uma mulher linda, jovem e cheia de vida, porém curta, contrastando com o rosto de Amábile, já velha, cheia de rugas mas viva de verdade com uma beleza única de quem nasceu para ser eterna em sua obra de cuidar e amar infinitamente.

Adrienne Kátia Savazoni Morelato
Enviado por Adrienne Kátia Savazoni Morelato em 09/04/2012
Reeditado em 21/04/2012
Código do texto: T3602112