Eu, a lua, São Jorge, o cavalo e o dragão.
Morávamos ao sopé da serra. E nos meus tempos de criança, a noite, brincávamos de "barra bandeira", "cadê o grilo?" "Onde estar o anel", "amarelinha", "roda" e outras mais. No terreiro, não muito iluminado com as luzes de mercúrio dos postes da rua, na verdade, da ladeira, nos divertíamos enquanto os homens jogavam baralho e as mulheres botavam a conversa em dia.
Era uma risada constante e também um tal de "te aquieta menino" que vinha das mães, quase sempre quando invadíamos o espaço delas passando pelo meio ou por traz ou quando a brincadeira ficava mais pesada e gritávamos que "fulaninho" tinha nos machucado. Os pais no seu mundo adulto muito pouco se preocupavam conosco. Nós éramos assunto para as mulheres ou os filhos jovens que ficavam um pouco distantes como sempre a falar das festas, dos paqueras, dos vestidos, do futebol e de tudo que interessavam aos jovens e que crianças não podiam saber e que a nós pouco importava no momento.
Mas como eu disse morávamos no sopé da serra. Não sei o nome, mas era muito alta, sabia que lá em cima era plano e que passava até carros, mas nunca tinha conseguido subir até lá. Era proibido. No entanto, eu morria de vontade de conhecer lá em cima e não era por um motivo banal. Era pela a lua. Principalmente quando a lua era aquela grande e linda em que eu podia ver São Jorge montado em seu cavalo e com a sua espada e o seu dragão. Imagem que me acompanhou por muitos anos desde o dia em que meu pai contou-me que na lua morava um santo guerreiro e que ele lutava com um dragão, montado em um cavalo alazão, só muito tempo depois vim a descobrir o que era um "cavalo alazão". Voltando a lua, ela me fascinava e em noites de lua cheia, muito mais. Um dia olhei para o cimo de minha serra e vi que a lua estava assentada lá... E que se eu subisse todos os degraus da ladeira eu conseguiria chegar junto a ela e quem sabe conseguiria até entrar dentro dela e falar com São Jorge e andar naquele cavalo, naquele de nome bonito, que no momento não me lembrava. Seria uma tarefa difícil. Minha mãe não me deixaria subir eu já tinha tentado ir lá pegar uma colorida pipa e ela colocou-me de castigo, sem brincadeiras, por três longos dias. Eu teria que agir com cuidado... Planejei, espreitei por uns dias até achar a hora exata... Tinha que ser naquele dia, ela estava grande e bonita... Fingi que brincava e fui subindo, contando que a conversa entre minha mãe e a vizinha estava animada, me esgueirei pela encosta e subi os degraus, não sei quantos, não sabia contar, mas era muitos, tantos que fiquei com vontade de voltar porque o cansaço já era grande, mais a vontade de ver São Jorge era maior e fui subindo e finalmente cheguei ao topo e tentei encontrar a lua assentada em alguma calçada, mas ao olhar para cima minha decepção foi tamanha... Ela, a lua tinha subido muito mais e estava mais longe ainda, muito mais e lá para onde ela subira não tinha mais serra e nem uma escada, eu sabia, chegaria até ela. Deu vontade de chorar, na verdade, chorei. Fiquei com raiva dela por ter fugido de mim para o céu. Achei uma traição (claro que não sabia que era este o nome), naquela hora decidi que não gostava mais de São Jorge e queria que o dragão vencesse, até daria uma ajuda se ele quisesse. Desci a ladeira chorando e ao chegar no terreiro lá em casa encontrei todo mundo apavorado. Minha mãe abraçou-me e começou a chorar. Meu pai com seu vozeirão me perguntou a onde eu tinha ido. Chorando contei que tinha ido ver a lua, mas que ela tinha sido muito má e se afastado de mim, subido bem para o alto e que não gostava mais de São Jorge e que queria que o dragão vencesse. Todos me olharam. Os jovens e as crianças mais velhas caíram na gargalhada, mas meu pai fez calar a todos e explicou ou melhor tentou explicar que a lua vivia no céu e que ela nunca descia a terra...Fingi que entendi. O desgosto que demonstrei foi verdadeiro e isto me livrou de um grande castigo, mas não de uma reprimenda e a proibição de voltar a subir novamente a serra... Não me preocupei. Nunca mais iria subir mesmo! Não gostava mais da lua e nem queria morar nela e muito menos ser amigo de São Jorge!