DDD - Diário de Derrotas [25]

07h15m

Essa é a hora que eu acordo desde que mudei de horário no trabalho. É a mesma hora que eu acordava antes da mudança.

07h30m

Essa é a hora que eu consigo sair da cama. Excepcionalmente hoje, senti um azedume desgraçado ao colocar o pé no chão. Uma sensação de que hoje tudo dará errado (como sempre) e que eu não saberei levar na esportiva.

07h35m

Essa é a hora que eu tento comer alguma coisa.

07h45m

Essa é a hora que eu entro no chuveiro e me atraso.

08h15m

Essa é a hora que a minha mão limpa recém-saída do banho abre o cadeado do portão da garagem; garagem que também é o ambiente de trabalho do meu tio mecânico. Essa é a hora que eu sujo a mão de graxa e óleo diesel e passo na calça e no muro de cor roxa que a mulher dele escolheu, pro meu desgosto. Meus próximos minutos serão preenchidos na caminhada até o ponto, trombando com um gato ou outro, com um cachorro ou outro, só pra me atrasar mais ainda e perder a lotação assim que chegar no ponto de ônibus.

08h36m

Essa é a hora que eu desembarco da lotação e ando até a plataforma do trem. Desvio das mesmas coisas, das mesmas pessoas; ando no mesmo passo rápido, e sempre me deparo com uma bunda diferente atravancando o caminho nas escadas rolantes, me fazendo perder também o trem.

08h40m

Essa é a hora que embarco no trem. Às vezes está tão cheio que não dá pra entrar, às vezes está cheio e dá pra ir esmagado, sem onde segurar, com uma mulher com o cabelo oleoso rente ao seu nariz; aquele cheiro de couro cabeludo sujo que remete a cachorrinhos de rua depois da chuva. Depois desembarcarei na Luz e farei a travessia até a Linha Amarela. Depois, a travessia até a Linha Verde. Não muda nada nunca.

09h30m

Essa é a hora que eu chego no escritório e ligo o computador, depois de ter passado pela mesma catraca na entrada do prédio, depois de ter dado bom dia às mesmas pessoas, depois de ter sido desprezado pelo mesmo gato, depois de ter perdido o mesmo elevador abafado e que tem a cada girada na polia uma iminente queda livre assassina. Às vezes eu quero ser o contemplado na tal queda, às vezes eu escolho outras pessoas. Às vezes eu queria acordar na areia da praia e perceber que a minha realidade é um sonho de mau gosto.

Com o computador ligado, eu abro os mesmos programas e navegadores: IE pra intranet, Chrome pras Gares e Gmail, Outlook pras encrencas e ProJuris pro sofrimento. Deixo tudo carregando e vou até a cozinha encher a mesma caneca com a mesma quantidade de água pra tomar o mesmo chá insosso de camomila; deixo a caneca fazendo a infusão no microondas, volto ao computador e coloco a senha em tudo. Volto à cozinha, pego a manteiga na geladeira e, ao abrir o pote, percebo que andaram raspando o pouco que havia sobrado sem pedir minha autorização. Tiro o chá do microondas, encho o restante da caneca com água gelada, coloco açúcar, passo manteiga no que tiver e volto ao computador. Na próxima meia horaseu farei um pouco de conciliação bancária, depois me dedicarei às guias até o meio-dia, ou até quando elas acabarem. Ou até quando elas não acabarem. Hoje, por exemplo, num só e-mail veio um pedido que resultará em 27 Procurações, 27 Custas Iniciais e 27 Diligências de Oficial de Justiça. E ai de mim se errar um centavo nos valores de cada uma...

11h00m

Essa é a hora que alguém morre atropelado e as ambulâncias começam a gritar. Essa é a hora que as más notícias chegam por e-mail.

13h15m

Essa é a hora que eu consigo sair pra almoçar, depois de ter conseguido, na surdina, me livrar dos meus tenesmos. Essa é a hora que eu paro na frente do prédio, como sempre, e fico olhando a mulherada passando, coçando a cabeça, tentando decidir onde almoçar e rezando pra não encontrar com ninguém. Onde almoçar? No chinês nojento e barato? No vegetariano saudável, caro e longe? No prato feito com salitre e suco trocado? Na galeteria metida à besta e cara que cobra serviço de mesa? Opto pelo último.

13h30m

A única mesa restante no lugar me foi imposta por um garçom mal comido. E essa mesa tem embutida uma gaveta, que de dois em dois minutos surge algum garçom pegando talheres e mexendo com tudo e tirando minha concentração. Essa mesa fica posicionada ao lado das enormes janelas do lugar, que dão direto na calçada de um hospital feminino; nessa calçada que serve de caminho pra quem vai e/ou volta da academia mais cara de São Paulo. Constato que a maioria saudável da região é de mulheres. O garçom encosta e faço meu pedido, que dará quase seis reais a mais do que ganho de Vale Refeição por dia - que não é pouco, felizmente. Se fosse na outra empresa, se eu almoçasse aqui quatro dias, meu VR estaria aniquilado. Estou por cima, mas não me sinto por cima. Me sinto pior. Porque se esse emprego de repente minguar, estarei fodido na merda. Um outro garçom traz essa lata de refrigerante superfaturada e abre sem que eu tenha pedido e coloca no copo sem que eu tenha pedido também. Eu apenas agradeço as coisas que não pedi e ele vai embora. Então uma mendiga loira de olhos verdes com cara de louca bate na janela e me mostra uma caixa de remédio e faz aquele gesto universal do dinheiro. Digo que não tenho - e não tenho mesmo. A filha dela abre a janela e as duas ficam com metade do corpo pra dentro, mexendo no saleiro, lambendo a ponta do pote pimenta e roubando meus guardanapos; não me dou conta, mas estou segurando a lata de refrigerante como se ela fosse um filho. Elas continuam insistindo e conturbando. Eu não sei o que fazer. Não tenho uma porra de centavo furado pra dispensá-las, e tenho esse bloqueio em expulsá-las aos gritos, porque elas não têm cem por cento de culpa por estarem na condição miserável que estão. Eu tenho, você tem. O cuzão que mata o morto de fome e bate o carro de um milhão tem. As duas desistem, fecham a janela e ficam trocando chave de braço na calçada onde passa aquela loirinha de nariz arrebitado com seu poodle ranhento e o garçom traz minha comida. Esse é o ponto alto do dia, porque depois que eu sair daqui, nada de novo. De novo. De novo.

14h20m

Essa é a hora que eu entrego as guias pros advogados. A mesma ordem de entrega. As mesmas perguntas. As mesmas assinaturas. A mesma correria. Nada de novo. Novamente.

14h35m

Essa é a hora que eu encosto no balcão da Nega que irradia alegria e choro minhas pitangas. É a hora que nossa conversa é interrompida por um barulho ritmado de saltos altos nos tacos. Essa é a hora que ela ri da minha desgraça. Essa é uma das únicas poucas coisas repetidas que são o ponto alto do dia, todo santo dia, todos os dias.

16h57m

Essa é a hora que eu estou concentrado em duas planilhas, três abas de internet e uma guia física pra fazer um serviço só e alguém me liga pedindo pra eu fazer alguma coisa na rua. As coisas variam entre postar cartas, entregar documentos, tirar cópia de chaves ou comprar ovos de páscoa que sequer chegarei perto do chocolate. Eu saio na rua e não há nada de diferente: a mesma Avenida Paulista de sempre. Os mesmos rostos diferentes iguais de sempre. Deus é tão criativo por ter criado o carbono que chega até a me comover...

18h30m

Essa é a hora que a hora não passa. É a hora que eu sinto um pouco de azia, cansaço mental, sono, calor e tédio. Tudo ao mesmo tempo. Todos os dias.

19h00m

Essa é a hora que eu escovo os dentes, lavo o rosto esperando meu nariz sangrar, mijo sentado, borrifo aromatizador de ar e fico de olhos abertos olhando pro teto. Depois que eu sair do banheiro começarei a ter crises de bocejos inconclusos que se prolongam até a hora que eu chego em casa.

19h30m

Essa é a hora que estou na faculdade, com as pessoas sentadas no mesmo lugar de sempre, assim como era na escola. Eu sento na mesma cadeira manchada no centro do auditório, na antepenúltima fileira, com duas cadeiras vagas de distância das pessoas que fiz amizade e que ficam à minha esquerda. Elas devem pensar que eu sou tímido e anti-social, e espero que elas pensem isso mesmo. Essa é a hora que eu percebo que pago metade do meu salário na mensalidade e não o faço pra ficar de papo furado. Mas prestar atenção na aula e fazer jus a tamanho desfalque financeiro (que dizem que é investimento, mas só com o tempo é que veremos) também é difícil. É difícil prestar atenção na ladainha de um professor que LÊ PowerPoint, de um outro que só fala da própria vida provinciana ou de um outro que é um bom professor, mas é professor de Sistemas de Informação, que por si só é a materialização pedagógica da pedância.

21h00m

Essa é a hora do intervalo. Às vezes eu vou ao banheiro, às vezes vou ao bebedouro e às vezes vou embora. Na maioria das vezes eu estico as pernas, aumento o som do MP3 - com as mesmas músicas dos últimos dois anos - e fecho os olhos tentando ignorar a mim mesmo. Sempre tentando bocejar. Nunca conseguindo.

22h30m

Essa é a hora que saio da faculdade e fico no ponto de ônibus esperando o ônibus que vai me deixar no Metrô. Na verdade, o Metrô fica a apenas cinco minutos andando daqui, mas tem muita gente pra puxar assunto no meio do caminho. Ou muita gente pra me ignorar. Prefiro manter o ar blasé (de pobre solitário).

22h55m

Essa é a hora que estou na plataforma de embarque da Estação Luz, parado no mesmo lugar de sempre, esperando o trem que vai pra Estudantes, que fica lá onde Judas perdeu as pregas. Felizmente, eu desço bem antes. Infelizmente, pouca gente desce antes. Infelizmente, muita gente desce depois de mim. Infelizmente, todo os dias eu tenho que arrumar uma discussãozinha na hora de descer, lá em Itaquera. E essa é a hora que o trem demora e a plataforma vai ficando cada vez mais apinhada, que o ar vai ficando mais nojento, que eu vou ficando mais impaciente. O farol do trem surge e as pessoas já começam a se amontoar. Eu faço o mesmo, porque não sou besta. O trem pára e as pessoas já estão coladas à lataria, se espremendo e se empurrando. A porta abre e a imagem do Mufasa desaparecendo entre os (Bois? Búfalos? Gnus?) sempre vem à minha mente. As pessoas se matam por um banco, e eu calmamente me dirijo ao chão da ponta do vagão e sento. Às vezes senta alguém comigo. Às vezes encosta uma mulher com a pataca bem na minha cara. Ou com a bunda. Às vezes é um homem. Na maioria das vezes é um homem. Essa é a hora que eu me pergunto até quando vou agüentar isso.

23h50m

Essa é a hora que eu chego em casa, depois de ter empacado na calçada do vizinho com o trio de gatos pretos dele, que amam brincar com os fones de ouvido até a hora que os vira-latinhas da dona do fliperama surgem me lambendo e espantando os gatos. Essa é a hora que eu chego em casa fedendo cachorro. E isso é uma pena, porque não acontece todos os dias...

00h34m

Depois de ter comido algum resto, de ter visto os vídeos de skate, depois de ter compartilhado/visto um festival de cretinices no Facebook; depois de ter pesquisado no Google o porquê de não conseguir bocejar e descobrir que eu talvez esteja beirando um colapso ou um enfarto ou um câncer no reto, eu coloco o relógio pra despertar às dez pras seis, que é a hora que devo levantar pra ir pra academia. Só que imediatamente após salvar o horário eu altero pras sete e quinze. Porque eu não tenho uma academia pra ir. A que eu posso ir porque fica perto e tem o horário mais estendido pede três parcelas adiantadas, no cartão de crédito, e meu cartão de crédito comeu metade daquela metade que me sobrou do salário.

00h50m

Essa é a hora que eu deito na minha cama, me cubro, grito com meu irmão pra ele abaixar volume e apagar luzes e fico me perguntado que porra de alienígena está se escondendo no meu guarda-roupa e que fica fazendo barulho de grilo.

01h00m

Essa é a hora que durmo pra descansar o corpo e me preparar pra outro dia reprisado.

04/04/2012

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 04/04/2012
Reeditado em 07/04/2012
Código do texto: T3594548
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