Caminhos da Liberdade

Num mundo tão cheio de carros os indivíduos são pouco importantes. Triste constatação.

Tive um tio que se orgulhava de nunca ter dirigido um automóvel. Ele achava que era coisa da ralé. Quando precisava de condução pegava um táxi, e fazia questão que o “chauffeur” (era assim que se escrevia antigamente) viesse abrir a porta. Era um advogado famoso que botou banca no Rio de Janeiro, escritório na rua Gonçalves Dias, e mantinha uma pose aristocrática de falso conde, ou de comendador, ou de qualquer outro título dignificante que já me esqueci. Almoçava na Confeitaria Colombo com uma corte de admiradores, suplicantes e apelantes. Profissional liberal por excelência, nunca contribuiu para qualquer instituto de aposentadoria. Preferia aplicar em imóveis, cujos aluguéis renderiam a pequena fortuna que necessitaria para viver com classe quando já não mais pudesse trabalhar. Diga-se, que quando esse dia chegou, ele se viu atrapalhado: ficou doente, hipertensão, diabetes, gota, todos os achaques da velhice que acometiam os ricos de antigamente. Hoje até os pobres estão obesos, hipertensos e diabéticos, coisas da democracia, diria um tucano realista aprovando o plano real que botou frangos nas mesas do pobre...

Então o tio, no final da vida gastou as suas reservas nos médicos, naquele tempo não havia plano se saúde, e ele, liberal como sempre, na certa não se disporia a pagar uma pequena fortuna mensal para ter a certeza de que morreria com a assistência médica da mais alta categoria e tecnologia de ponta. Então suas reservas começaram a minguar e ele, com a desculpa de usufruir ares mais saudáveis, mudou-se para uma pequena cidade do interior do estado; aluguéis baratos, corridas de táxi quase de graça. Instalou-se numa enorme varanda de uma casa antiga, e lá passava os dias a jogar buraco, ler jornais e fazer palavras-cruzadas. Pobre tio, não sobreviveria no mundo de hoje, em que alguém sem automóvel é um ser incompleto, é um homem ou mulher sem dignidade.

As megalópoles aí estão atulhadas de carros que não conseguem andar, ou andam a velocidade média de dez ou quinze quilômetros por hora, o efeito estufa, já sobejamente reconhecido como sendo uma real ameaça provinda, principalmente, dos motores dos automóveis, e ninguém quer dar o braço a torcer: o automóvel continua sendo o sonho de consumo da maioria, carros cada vez mais confortáveis, potentes bonitos e, ultimamente, blindados, para ficar parados nos mega-engarrafamentos. E, com o tempo, o automóvel está se transformando em escritório. Os executivos, instalados nos estofados dos bancos de couro, com o ar condicionado bufando, conectados a internet com os seus laptops, continuam trabalhando dentro dos carros, nos engarrafamentos; E o sistema de transporte público continua a ser uma desgraça.

Fico me perguntando que tipo de investimento é esse, que se desvaloriza assim que você o tira da concessionária e que só dá preocupação. Vale a pena ter um carro? Em princípio sim, todo o homem ambiciona ter um automóvel potente e reluzente como símbolo de sua virilidade, de seu individualismo auto-suficiente. Ninguém ganha uma mulher se não tiver um disponível para, a qualquer momento, fazer uma incursão pelo mundo do sexo e do romantismo.

Somos cavaleiros andantes, isso é rodantes, nas patas de um cavalo produzido e mantido pelas grandes companhias. Estamos respaldados por gigantes, cujos nomes, simbolizam o poder e o sucesso. E quem dá bola para o transporte público. Abriríamos mão de nossos automóveis se tivéssemos um bom sistema público de transportes? Alguém tem idéia do custo social que o complexo “automóvel-petróleo-siderurgia-estrutura viária” traz em termos de “recursos necessários, acidentes com mortes, poluição, guerra” para a humanidade?

Quantas questões que o meu tio não precisará mais responder, já que nunca dirigiu, e agora nem que queira dirigirá, pois está percorrendo os céus em carruagens douradas. E eu num baita engarrafamento.