Uma Força Que Me Ama

Uma Força Que Me Ama










- Olha, moço – fez a menina com aparelho nos dentes – vai demorar, estamos sem sistema...Vou dar esse número aqui para o senhor, é só aguardar. A outra menina vai chamar pelo número, mas vai demorar.

Pensei em dar uma volta no quarteirão. Que mal há? Crescido quarteirão – árvores, comércios, residências, prédios classe A, outros nem tanto, o Brasil tornou-se uma cultura muito diversa e ainda de difícil classificação. Dizer que é uma zona não ajuda em nada.

São três da tarde, se tanto. Um sujeito alto, desengonçado num terno preto, curto o suficiente para mostrar seus antebraços, fala para mínima platéia em plena calçada, estão na porta de uma cantina, alguém fora buscar seu veículo.
 
- Não importa se você é gordo, magro, desamado, se seus pais te repudiam, se seus filhos não te procuram, se seus amigos te acham um fracasso, se você mente para si mesmo e para os outros, para sobreviver ou suportar, se seus cabelos caíram ou estão crescendo...

Fui obrigado a contornar pela rua, porque eles ocupavam toda a calçada. Já tive vontade de comer nessa cantina. Parece um lugar de onde não se sai insatisfeito. 

Ops, parada obrigatória. Logo na frente, coisa de trinta metros, dizendo assim ao acaso, chega uma viatura imbuída daquela ressonância que lhe é peculiar, depois outra, pessoas correm e desaparecem virando a esquina, gritos, permaneço estático numa vã tentativa de compreensão, tudo com uma rapidez espantosa, e me vem à mente que a palavra “lentamente” não dá a idéia de estagnação e sim de movimento. 

Com vagar rodopio e com mais dois passos vejo que o homem continua palestrando para cinco ouvintes, duas mulheres, dois homens e uma criança. 

- Nossa sociedade prega o conceito de sucesso a qualquer preço. Sabem o que eu sou? Um sucesso disfarçado de fracasso...

Uma das mulheres soltou um risinho desafinado. 

Voltando pelo mesmo caminho posso me estender até além do ponto de partida e dar a volta pelo outro lado do quarteirão. Quem sabe esse aborrecimento criminal já tenha passado. 

Ora vejam quem vem lá, o Habbib. Ninguém sabe o seu nome. Ele chama todo mundo desse jeito, fica na esquina gritando “Habbib, Habbib”, ele me chama assim e eu o chamo assim também. No Domingo de Ramos deu-me ramos, sua cor é inexata, um de seus olhos foi-se, tem um aperto de mão vigoroso e dir-se-ia alegre como um Bem- te-vi. Contou-me sobre a aposentadoria que não sai, a filha que não se sabe onde está e a doença, esta se sabe. Uma criatura tonante e mais uma lição que a vida suavemente me mostra.

Passeio olhando coisas que normalmente vejo com outros olhos. Torno ao consultório e a menina me avisa que o número não saiu. Mas que é bom eu ficar por ali, pois logo mais virá uma moça me dilatar a pupila. Calma lá, pensei, a última vez que passei por essa experiência tinha 13 anos de idade, fiquei o dia inteiro tateando e só vim a enxergar corretamente na hora do Chico Anysio Show, lá pelas 10 da noite. Deu-se este ocorrido em 1973. 

A menina me olhava, indagativa. Combinamos que o negócio da pupila ficaria para outro dia e a consulta para daqui a pouco. Voltei ao quarteirão. 

Muito bacana essa luz outonal.  
No ponto de táxi dois taxistas conversam e ao lado deles há uma banca de jornal. De pé fico, com um olho perante um sem fim de notícias e um ouvido na conversa deles.

- Força acaba – diz um – o negócio é boa vontade, para substituir pela força. Eu já te contei sobre Santo Agostinho?

- Você está xarope – disse o outro.

- Santo Agostinho dizia que o Bem é inesgotável ao passo que o Mal é finito.

- Você está xarope – repetiu o outro.

Continuei andando, logo ali está o letreiro de uma escola de música há anos desativada. Um predinho de 3 andares, um letreiro que seria a glória dos comunicadores visuais e uma escola de música que não existe. Tudo no mesmo espaço, inclusive a ausência. 

Penso em fazer contas, mas antes vou te narrar uma parábola que ouvi outro dia, talvez lhe seja útil.

“O propósito de uma pessoa no esquema das coisas não é superior ou inferior ao de outra. Nenhum de nós pode fazer tudo o que tem de ser feito. Hoje, um avanço na física pode ter acontecido porque um professor de primeiro grau redirecionou, trinta anos atrás, um problema de aprendizado para uma criança que se tornou cientista e, portanto, a energia desse professor faz parte da conquista atual”.

Desta feita consegui dar a volta completa no quarteirão. O palestrante da cantina seguiu seu rumo e o desarranjo policial, ao que tudo indica, esvaneceu-se. “Tudo muda, o tempo todo”. 

Ah, sim, as contas. Ora, somos 7 bilhões, uma única espécie em meio a 4 milhões de espécies, num planetinha minúsculo, numa galáxia minúscula, existem bilhões de galáxias, nosso sol é uma estrela anã e o grande cenário apresenta duas certezas imutáveis – tempo e espaço são infinitos. 

Chego em cima da hora para a consulta e o homem diz que está tudo bem comigo. Proseamos um pouco, ele tem idade para ser meu filho, espero voltar aqui quando o recepcionista se parecer com um dos meus netos e apenas para rotina. Ele sorri e me conta o seguinte: Pensamentos positivos são lentos, leves e conectam o pensador ao seu potencial pleno. Por outro lado, pensamentos negativos são velozes, repetitivos, exaustivos e provocam dúvidas. 

Despedimo-nos como dois astronautas que se encontram por acaso, cada um na sua missão. 

Nessa altura do campeonato, como posso negar a existência de uma força que me ama? Ela me solicita na medida certa. Eu, por outro lado, deveras peço. Talvez seja a minha natureza. Ainda há muito o que mudar. Tudo o que ela me pede é um pouco de espaço para participar da brincadeira. 


(Imagem: Auguste Rodin)

 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 02/04/2012
Reeditado em 09/07/2021
Código do texto: T3590559
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