Atrozes e Furiosos
Nada daquela lengalenga de que ontem era melhor que hoje. Os dias são também muito bonitos hoje. A chuva, quando não se trata de enchente, é linda e deixa a grama verdinha logo depois que cai. Hoje podemos saltar de pára-pente e termos uma visão do Rio que nossos avós nunca tiveram. Andavam de helicóptero, mas não podiam experimentar a emoção de terem sozinhos pela frente toda a beleza de São Conrado. Embora acidentes ocorram.
Hoje quando, estamos num ônibus, nos encontramos prevenidos. Uma notinha de R$ 10 ou 20,00 no bolso, um relógio que a gente sabe que não vale nada mesmo. E a disposição de até entender o assaltante. Estamos prevenidos. Podemos até dominar a própria emoção. Não é como antes, quando éramos apanhados de surpresa porque ninguém era assaltado dentro de um coletivo com frequência.
Mas qual será a emoção que sentimos hoje diante das cenas na televisão da verdadeira batalha entre torcedores do Palmeiras e do Corinthians? Ou no caso da mãe que, junto com outras duas, atingiu uma menina com um soco no rosto porque a garota teria implicado com a filha dela? (Mãe ou lutadora?) Ou diante de um rapaz que é impiedosamente espancado por outros dois ou mais? Ou diante de guardas municipais espancando um mendigo? Ou diante de um rapaz que em plena avenida é atingido no rosto por um vidro por ser homossexual?
Será que, colocando-nos no lugar da vítima ou vítimas, poderíamos pensar em um modo de nos defendermos, usando igualmente da mesma violência? Será que não daria vontade de pularmos com os dois pés nas costas daquela mãe para impedi-la de continuar espancando a menina, com a ajuda de outras duas mães? Será que poderíamos aprender alguma coisa com o programa Ultimate Fighter que vai passar na Globo daqui a pouco?
Ou seria melhor lembrar do poeta do povo, conhecido aqui no Rio por Gentileza exatamente por ter pregado, quando era vivo, que “gentileza gera gentileza”?
É possível que alguns expectadores mudem de canal ou desliguem a televisão diante de tais cenas. Mas serão eles os de hoje, de certo modo já habituados com esse tipo de ocorrência, às vezes até com a participação pessoal, ou os de ontem, que ainda podem se achar surpreendidos?
Garoto cortando o dedo no cerol; soltando balão que, ao cair, bota fogo no terreno baldio; jogando bola de gude na rua ainda não pavimentada – situações praticamente em extinção nos dias de hoje. O que se tem agora é o garoto durante um bom tempo diante do monitor, distraindo-se com os seus vídeos-game. Em muitos casos pequenas indústrias de violência. .
Mas não é só isso. Notícias de poderosas nações invadindo outras mais frágeis, com numerosas baixas na população civil, não podem ser escondidas dos menores. Até porque são freqüentes. E continuadas. Há quanto tempo se fala nos combates na Síria? Que se seguiu à mutilação do Kadafi em plena tua? Praticamente após à invasão do Iraque, sob o pretexto de enriquecimento de urânio, nunca comprovado? E o que se fez com a população civil da Nicarágua um pouco mais lá atrás?
Dá pra não ser um mundo conturbado? E seus cidadãos, em consequência, podem deixar de ser conturbados? Sendo ou não barbados?
Será que adianta um muro de lamentações. Ou será melhor um monte de aviões de guerra ou mísseis pairando sobre cabeças que não sejam as nossas? Ou terrenos cheios de minas, como nas Malvinas?
Mas a imagem digital, comparada com a de ontem, é praticamente perfeita. Capaz de nos mostrar com clareza ou riqueza de detalhes as gravações. Ainda que substancialmente se tratem de atrocidades. Ou cidades atrozes. Ou velozes. Ferozes e furiosas.
E, no entanto, dá pra dizer que está tudo errado? Ou tudo não passa de um pedaço do tempo?
Rio, 01/04/2012