AS BALANÇAS DA JUSTIÇA (revisado)

Era uma tarde quente de céu límpido... Por todos os lados, em toda a parte, em tudo, havia e se refletia a luz intensa e brônzea do sol. O calor era extenuante chegando a me fazer, se não delirar, sonhar, deliciando-me com alguma bebida refrescante.
Depois de muito andar e resolver meus assuntos, avistei uma venda de água de coco. Era exatamente o que eu queria. Enquanto me comprazia com aquela bebida divina, observei que ali, onde me encontrava, havia um grande número de ripes vendendo seus artesanatos, fato que até então não era comum. Todos vendiam pulseiras, colares, brincos, tornozeleiras e outros tipos de bijuterias feitas de sementes, pedras, casca de árvores, pena de aves e outros materiais. No entanto, um deles não vendia somente isso. Ele estava sentado no chão e seus dedos magros, longos e morenos concluíam uma segunda balança de pratos dessas que expressam o símbolo da justiça. Diante dele estava a outra, já pronta. Meus olhos se interessaram por aquilo. Fitei as balanças que reluziam tocadas pelo sol como se recebessem uma incrível aura... O vento do cais soprava sobre as balanças fazendo oscilar o equilíbrio dos pratos... Que cena incrível! Uma metáfora viva! Senti-me abstrair-me do mundo e de tudo que me cercava. Parecia-me mesmo, que por um instante, estavam apenas eu, o artesão, o sol, o vento, e ao centro, as balanças da justiça. Fiquei extasiada em pensamentos... Uma balança pronta e outra sendo tecida...Fiquei pensando: seria necessário tecer uma nova balança da justiça? O que teria levado aquele homem a confeccionar tais objetos? Teria ele dentro de si um desejo de justiça? Seria a materialização de um sonho de infância? Para quem esperaria vender tais objetos? Um juiz ou outro representante da justiça compraria seu humilde artefato? O que pensava ou sentia aquele homem. Não pude ler isso em seus olhos, pois estavam fixos e concentrados na peça que confeccionava. Tive o ímpeto de comprá-las. Não sei bem o porquê. Gostei das peças. Elas resumiam em si uma beleza rústica com um quê de antiguidade, mas o motivo talvez fosse a singularidade daquele fato, o contexto que as envolvia, as mãos e o ser que as criara, os sonhos e os sentimentos que pouco a pouco iam se entrelaçando na feitura das correntes que seguravam os pratos, na energia da emoção que ficavam intrínsecas naqueles objetos, no tempo da vida daquele homem que estava nelas e não poderia ser mais tomado...
De repente lembrei-me que estava atrasada para resolver outra pendenga. Mas prometi a mim mesma que voltaria ali e me decidiria em comprar, se não as duas, pelo menos uma delas. Resolvi o que tinha pra resolver e retornei ao lugar, ansiosa para que meus olhos tocassem novamente aquelas balanças.
Quando as vi, meus olhos ansiosos se entristeceram... As balanças estavam caídas. Sim, elas estavam caídas.
Não. Aquilo nunca poderia acontecer. Uma balança caída não pode exercer sua função, não tem serventia. Aquilo perturbou-me profundamente. Andei em círculos, pelo chão, e no turbilhão de meus pensamentos e de minha emoção. Quem as derrubara? Teria sido o forte vento? Dice ou Iustitia as teria deixado cair? São Miguel Arcanjo sei que não.
Mas a verdade, que ali estava expressa, inexistente para tantos olhos, gritava, para que ao menos fosse ouvida... Estaríamos, então, sem ver ou ouvir? Alguém disse: a justiça é cega, mas enxerga no escuro. E nós, estamos realmente enxergando, mesmo possuindo a visão, livre das vendas e na presença da luz? Pois quantas balanças da justiça estão derrubadas nos tribunais do mundo, na consciência humana e até mesmo em nosso coração.



Marta Cosmo
Professora, escritora e artista visual.
Texto publicado no Jornal Diário do Pará em 22.03.2012