RIO DE JANEIRO: UMA VIAGEM AO PASSADO – PARTE III

No dia seguinte, depois da noite em Copacabana, foi puxado. Na Sala Góya (em homenagem ao pintor e gravador espanhol Francisco José de Góya y Lucientes – considerado, por muitos, como o “Shakespeare do pincel”) o Encontro Nacional de Mediadores de Leitura PROLER não pintava apenas quadros ou aquarelas, mas uma paisagem, em vários retratos, da realidade brasileira voltada para o hábito da leitura.

Estudiosos e pesquisadores do assunto discutiam e mostravam possíveis caminhos para que nossas crianças passem a ter o costume de ler. Professoras e bibliotecárias, na plateia, davam exemplos de como, nos seus estados, os índices de leitura aumentaram depois de determinadas ações, algumas até simples demais, voltadas para estimular a criança a se inserir no universo da leitura.

Lembrei-me dos meus tempos de menino em que ficava, no finalzinho da tarde, esperando que aqueles senhores maiores de setenta anos, curtidos pelo sol inclemente do sertão castigado pela seca – mas que não dispensavam a prosa do entardecer – viessem se sentar nos tamboretes colocados no alpendre da casinha de taipa em que eu morava. Até a chegada deles, o coraçãozinho disparava, acelerado que ficava, à espera de que eles, de fato, viessem. Era a oportunidade que eu tinha para ouvir as “histórias de trancoso” e as lendas criadas por eles – muitas de improviso –, mas que me transportavam para o meu mundo imaginário (e criativo) onde eu recriava a história e dava um novo sentido a ela – contando para os meus irmãos – pondo em prática, sem querer (claro!), uma das teorias de Roland Barthes que diz: “o escritor não tem passado, pois nasce com o texto” – ou seja, eu dava sentido ao que ouvia, depois recriava o texto à medida que ia fazendo uma releitura daquilo que ouvia. Na verdade, eu me fundamentava naquilo que tinha ouvido e, em cima daquilo, dava um novo sentido ao que fora criado.

Agradeço a eles, homens sem nenhum título formal de doutor – mas que sabiam contar histórias e, consequentemente, tinham interesse pelo mundo do faz de conta –, a minha vontade de ler uma pequena parcela – porém muito boa – de tudo quanto foi escrito em termos de literatura universal. Fui inserido, pois, na literatura, por haver prestado atenção àqueles senhores sem instrução alguma, que falavam um português bem diferente da modalidade oficial, mas que, na minha infância, era o modo mais certo de estimular a imaginação e a curiosidade daqueles pequeninhos que ficavam de bocas abertas, com os olhos esbugalhados – sem jamais piscarem –, a garganta seca e o coração em sobressalto a cada episódio contado – na maioria das vezes, até de forma teatral.

De volta das minhas divagações, os organizadores prestavam, naquele momento, uma homenagem ao escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queiroz – falecido este ano, no mês de janeiro –, um dos mais importantes nomes da nossa literatura e um dos principais autores de projetos de leitura no Brasil, dentre eles, o PROLER e o Biblioteca Nacional.

Voltei-me para um vídeo em que ele falava sobre a sua experiência diante da beleza: “a beleza é tudo aquilo que você não dá conta de ver sozinho. Quando você encontra alguma coisa bonita, você fala assim: fulano devia ver isso. Aí você vê o pôr do sol muito bonito através de sua janela e você diz: fulano podia estar aqui comigo. Você vai ao museu e vê um quadro e, na mesma hora, você diz: fulano era para estar aqui para ver isso. Você vai ao filme e, quando sai, diz: não era para eu ver esse filme, mas fulano de tal. A beleza não cabe em você. Ela não cabe. Então, eu acho que o livro para a criança é aquele livro que o professor, o adulto, o pai ou a mãe lê e fala assim: quem deveria ler isso é o meu aluno/filho. Sabe, não dá conta e passa. A beleza é profundamente triste quando você está sozinho. Você não dá conta dela. Ela pesa muito. Então você tem que passar para alguém...”

Não tive como não voltar a Rubem Braga. Ele achou tão bonito o vento que trazia a Lua, que teve que escrever para não pesar tanto dentro dele. A mulher faz isso, tenho certeza. Já imaginaram: ela se produzir todinha e ter o prazer de mostrar-se apenas para o espelho? Acho que ela não aguentaria tanta beleza para uma única pessoa na plateia: ela mesma. Mas, não é isso que o escritor, o poeta, o pintor e o arquiteto fazem?

Neste caso, se a beleza é um fardo quando não a compartilhamos, o que dizer, então, do livro quando não lido? A beleza contida em suas páginas, através de suas letras ou de seus versos, não teria nenhum valor se alguém não o lesse. Coitado de “O Velho e o Mar” de Ernest Hemingway! Entretanto, assim como disse Bartolomeu Campos de Queiroz, quando se escreve, escreve-se para que outros leiam. Acredito que, em sã consciência, nenhum autor escreve somente para si. Ele pode até ser um recluso convicto (Jerome David Salinger – J.D), porém a sua obra foi, por ele mesmo, disponibilizada para milhões de leitores no mundo inteiro.

Diante disso tudo, as conversas daqueles homens rudes, de poucas palavras – mas que, quando começavam a contar as suas histórias, parecia que baixava o espírito de um verdadeiro disseminador de fantasias – que, debaixo do alpendre, às tardinhas, lá no meu sertão de terra batida, onde a acauã faz a sua morada, reuniam a meninada para ouvi-los falar de Lobisomem, Mula sem cabeça, a Mulher de preto e o Saci-Pererê, entre outras, jamais seriam lembradas se algum daqueles meninos não as tivesse repassado, mais tarde, para os seus filhos e netos e, com isso, desse continuidade ao processo de contação. Eu, particularmente, tenho posto em memória, em várias crônicas, passagens sobre os velhos contadores de histórias e o alpendre da Casa de Taipa.

O dia estava acabando. Dali a pouco, o passado voltaria à tona através de uma casa de eventos e a sua famosa roda de samba...


Continua...


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Grupo Nordeste III de Estudo


Sala Góya - Hotel Regina


Grupo Nordeste III


 
Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 01/04/2012
Reeditado em 19/04/2019
Código do texto: T3588119
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