O INTERFONE - Texto da década de 1990

A bota de louça, enfeite sobre a prateleira da estante, é uma taça de chope, grande demais para a boca de um liliputiano e insuficiente para os pés da bruxinha na sua cadeira feita com pregadores de roupa.

A estatueta de Van Gogh continua observando, com extraordinária atenção, a mancha na parede onde houve o pôster com cena do filme Casablanca... you must remember this... e não demonstra qualquer interesse pelo violino de Paganini, talvez porque a caixa-de-som lhe esteja lateral à orelha cortada, ou porque prefira um cravo bem temperado.

Dom Quixote se recosta displicente a um manual de computação enquanto as flores do mal perfumam o compêndio sobre hierarquia dos anjos, o qual também se ressente do maciço Ulisses à sua direita.

O telefone nada ouve e nada fala. Nem amarras, nem mordaças, nem vozes idílicas. Talvez mantenha o silêncio sábio porque seja, mesmo, um monge em zazen.

Sobre a mesa-de-centro, o jornal de ontem respira a frescura das violetas lilases, já cristalizadas nas dezessete sílabas do haicai de anteontem.

A cadeira de balanço está como alguém numa noite de sexta-feira, alguém que já tomou seu banho, colocou o penhoar, os chinelos, jantou e, neste instante, deixa que todos os pensamentos venham e sem esforço lhe escorreguem pelos braços.

O violino se cala, consoante a placidez geral. Alonga-se o tempo do silêncio tudo de repente estilhaçado pelo som do interfone chamando.

Texto da década de 1990; republicação na manhã de 01 de abril de 2012.