Millôr, o nosso Shakespeare

Terça morreu o Millôr Fernandes. Soube quarta, olhando o Jornal Nacional num bar daqui de Charky City. Morreu "O Gênio da Raça", como colocou a revista Imprensa na capa em outubro de 1994, pois trazia uma entrevista com o mesmo aos 70 anos de vida e 56 de jornalismo. Se puderem ler, recomendo.

Ele foi uma das minhas grandes influências, o sabe quem já leu o meu perfil aqui no RL. Inclusive, sou Antônio Rollim Fernando de Braga Bacamarte, e o Rollim de meu nome é uma homenagem a ele. O Fernando ao Luis Fernando Veríssimo e o Braga ao Rubem Braga, essa trinca que muito me influenciou literariamente, o Millôr no topo dela.

Eu até já fiz um texto de gozação chamado Bacamarte>Veríssimo!!! (quem quiser entender, lei-o aqui no RL). Mas confesso que nunca teria peito de fazer uma brincadeira dessas com o Millôr. Ele pairava para mim como um gênio mesmo, um Shakespeare brasileiro, joga no mesmo time de Machado de Assis e de Guimarães Rosa, embora nunca tenha sido eleito (ele e o Mário Quintana) para a Acabemia Brasileira de Letras, casa em que o Sarney ocupa a cadeira 38.

Por falar em Sarney, digo que não tenho nada contra ele. Tá por aí ainda, democraticamente ocupando espaço na vida pública. Mas o Millôr não gostava dele e, quando ele ganhou mais um ano de mandato quando presidente, desancou em seu "quadrado" no Jornal do Brasil o livro Brejal dos Guajas, de "Sir Ney". Utilizou para isso o espaço de nove edições do JB seguidas, depois ainda abordando-o, "a pedidos", em mais duas. Tudo está no volume 3 do Diário da Nova República (L&PM, 1988), que reúne uma seleção do que ele publuicou no JB, tudo impagável. Tem ali inclusive uma charge onde o Sarney aparece reclamando com seus assessores: ""Porque, há mais de uma semana, vocês não me trazem o Jornal do Brasil?".

Das frases em homenagem ao Millôr que vi serem utilizadas pelo pessoal no Facebook, duas me chamaram a atenção: "Viver é desenhar sem borracha" e "A vida realmente começa quando entendemos que ela termina". Eu, na minha idade, estou bem na fase que a segunda frase expressa.

Hoje fui visitar um amigo meu que está doente. Tem 62 anos, é como se fosse meu irmão mais velho. Um cara muito inteligente, grande liderança política (foi o vereador mais votado da história de Charky City, em 1996), um homem vigoroso que foi militar por alguns anos num pelotão especial do Exército. Mas fumou a vida inteira. Agora está lá, não consegue caminhar um quilômetro sem ser à passo de tartaruga e, mesmo assim, parando para descansar.

Viver é isso, desenhar sem borracha, escreveu muito bem o nosso agora saudoso Shakespeare.

O meu gato Vasco foi atropelado em novembro. Perdeu um olho e quebrou o maxilar. Fiquei vinte dias de enfermeiro dele, até ele estar fora de perigo. Tenho que bater duas vezes por dia a comida dele num liquidificador. Ele está forte de novo, gordo. Esses dias peguei ele no outro lado da rua brigando com um gato preto bem maior que ele; em janeiro ele engravidou a gata preta da minha sogra. E dizer que o veterinário me recomendou castrar o Vasco, para ele ficar mais em casa e, assim, mais protegido. "Bem capaz, o Vasco já tá caolho e babão, se eu capar ele ainda por cima será muita sacanagem". Que o Vasco viva o tempo dele como gato, não como eunuco ou como o gatinho do Frankenstein.

Pois quando olho para o meu amigo eu penso nele melhor daqui a uns dias, assim como o Vasco. Mas o Vasco tem apenas dois anos, o meu amigo 62. Não consigo vê-lo brigando com um negrão com duas vezes o tamanho dele e nem engravidando uma gatinha. Se ele conseguir caminhar sem perder o ar, normalmente, já estarei bem contente.

E daí é o que o Millôr escreveu: "A vida realmente começa quando entendemos que ela termina", pois daí a gente percebe com quanta bobagem perdemos tempo e de quanto deixamos de viver coisas que realmente importam. Dai, mais pro fim, vimos que ficamos sozinhos, com nós mesmos e com algum parente ou amigo que realmente nos dedica repeito, admiração e afeto. Logo, podemos nos dedicar a priorizar o que é prioritário para a nossa felicidade e deixar em segundo plano o que é secundário. A isso eu chamo de sabedoria. Não vivemos pra sempre, não temos todo o tempo do mundo.

Millôr, genial! No mesmo Diário da Nova República tem um desenho dele, que me impressiona até hoje, na página 38 (é o mesmo número da cadeira ocupada por Sir Ney na ABL, mas é só coincidência): um circulo ocupando todo o quadrado do espaço dele no JB, com uma frase pequena no centro: "Desculpem, mas hoje é domingo. O quadrado resolveu dar uma circulada". Só um gênio mesmo para ter o peito e a capacidade de fazer uma coisa dessas num grande jornal.

(Estou publicando minha crônica semanal hoje, quinta-feira, pois amanhã estarei offline)

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Era isso pessoal. Toda sexta, final de tarde, estarei aqui no RL com uma nova crônica. Abraço a todos.

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Antônio Bacamarte
Enviado por Antônio Bacamarte em 29/03/2012
Reeditado em 29/03/2012
Código do texto: T3583536
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