Salvador mais velha

     Moro em Salvador há mais de cinquenta anos e posso dizer, com a mais absoluta sinceridade, que sou um cearense apaixonado por essa cidade.
     É muito difícil não se querer bem a Salvador que, amanhã, 29 de março, fica mais velha: 463 anos!
     Salvador tem um quê, que enfeitiça a gente! Era o que eu ouvia quando aqui cheguei, em 1957. 
     Achava que era um exagerado bairrismo. Por isso, relutei em acreditar.
     Vinha de Fortaleza, uma cidade alegre e extremamente acolhedora, e que mostrara a este ex-seminarista o mundo que ainda lhe era desconhecido.
     Foram muitos anos praticamente morando nos claustros dos seminários.

     O tempo, porém, encarregou-se de confirmar o que ouvira sobre Salvador, até de outros cearenses que aqui desembarcaram antes de mim.
     Desembarcaram, instalaram suas tendas, e nunca mais deixaram a Boa terra. Porque a terra é, de fato, muito boa.
     É a "terra da felicidade", disse-o muito bem o Ary Barroso, cantando a Baixa dos sapateiros, hoje tão desprezada pelos poderes públicos. E pelos baianos, também.
     Como, então, não querer conhecer Salvador, a terra que inspirou Caymmi; conhecer as "365" igrejas do Jorge Amado? 
     Conhecer a beleza e a magia dos seus terreiros de Candomblé, reverenciando os Orixas?
     De repente comer um acarajé ou um abará num dos tabuleiros espalhados pelas ruas da cidade, hoje tão maltratada pelos homens que a governam.
     Tem toda razão o nosso Manuel Bandeira quado, em Crônicas da Província Brasileira, sobre a capital baiana, afirmou: "Nunca vi cidade tão caracteristicamente brasileira como a boa terra! Boa terra! É isso mesmo!"

     Na manhã de ontem, dei um pulinho no centro, centrão, de Salvador. 
     E lá vi dezenas de gringos, máquinas fotográficas na mão, clicando sem parar.
      Não queriam perder um só detalhe, fosse grande ou pequeno, do Centro Histórico, que devia ser mais bem tratado.
     No Terreiro de Jesus, o que mais eles fotografavam era a centenária igreja de São Francisco de Assis. Entre todas as igrejas baianas, sem sombra de dúvida, a mais rica e a mais bela. Um marco histórico. E porque tombada, precisando dos cuidados do governo federal.
     Outros se deleitavam e se divertiam fotografando a baia de todos os santos, com os Transatlâticos chegando, um depois do outro, e os saveiros saindo pro alto mar.
     Vendo-os, pensei: Salvador nasceu para ser fotografada... e amada.

     Queria, meu caro leitor, contar-lhe, que houve um tempo em que, em Salvador, chamava-se ela de iaiá e ele de ioiô, um tratamento pra lá de carinhoso. 
     E não foi no tempo da escravidão, como muitos poderão imaginar. Por favor!
     Vejam. Quando aqui cheguei, ela ainda podia ser chamada de iaiá e ele de ioiô. 
     Tanto que, não estranhei quando, um dia, aquela baianinha manhosa me chamou de ioiô...
     Numa noite de lua cheia, nas areias de Itapuã, ela cantou pra eu ouvir: "Ai, ioiô/ Tenha pena de mim/ Meu Senhor do Bonfim/ Pode inté se zangar/ Se um dia ele souber/ Que você é que é/ O ioiô de iaiá." 

     Ioiô e iaiá são palavras que quase não mais se ouve nas ruas da velha Salvador. Por que, hein?
     Outro dia, um freguês foi acusado de racismo porque, num supermercado, chamou a caixa de iaiá, uma linda negra, radiante, reluzente, alegre. Quando a encontro, não me canso de admirá-la.
     463 anos! Salvador, minha bela aniversariante, permita-me chamá-la de minha iaiá. Com carinho e agradecido...
      
     
     

      
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 28/03/2012
Reeditado em 28/03/2012
Código do texto: T3580542