TIA CHEGUEI


Ontem, em visita a um tio muito querido, mais uma vez, constatei de perto, como a linha que separa a vida da morte, é tênue.
Por vezes essa linha se mistura, como a que separa o firmamento e o oceano.
Deitado no leito do hospital lá estava ele. Frágil necessitando de toda atenção e cuidados.
Não pude deixar de lembrar do homem forte, lutador, dinâmico, de outros tempos.
Hoje, precisa de ajuda pra se alimentar, banhar, e não consegue manter-se em pé.

Fazia algum tempo que não o via, e pensei que pela sua idade avançada, e pela debilidade que a doença lhe conferiu, ele não fosse me reconhecer.
Eu, estava muito enganada, pois assim que me viu, disse: "é a Lena".
E mais tarde acrescentou: "Lena, pensei que você tivesse esquecido de mim, mas você veio me tirar do purgatório".
Não sei a que ele se referiu, quando me disse essa frase, mas devolvi, com um olhar de gratidão e segurei sua mão com carinho.
Logo após a morte de minha mãe, a casa do meu tio, que ficava na mesma rua da casa de meus avós, era meu porto seguro.
Representava um pouco do lar, que eu não tinha, e me sentar à mesa para jantar junto aos meus tios, e primos, matava um pouco da árida realidade que aos 11 anos eu tive que enfrentar.

Sempre gostei muito desse tio. Ele, como bom italiano, tinha lá seu temperamento acalourado. Porém, à sua maneira, sempre me acolheu com carinho.
Com seu jeito franco e direto, me dizia coisas do tipo: "Leninha, você não devia estar usando essa saia vermelha, afinal faz um mês que sua mãe morreu".  
Imagine hoje um psicólogo ouvindo um adulto dizer isso, a uma criança de 11 anos, que havia perdido a mãe recentemente.
Mas, era o jeito dele, por outro lado, ele entendia minha dor, pois, certa vez disse a minha tia: "Ninguém pode imaginar o que ela sente, sem a mãe". Disse isso ao presenciar uma de minhas crises de mau humor.

Pra onde iam passear, esses tios, me levavam. Fosse num almoço em casa de parentes, ou em viagem de férias à praia do Gonzaga.
Aos meus avós e a esse tio e tia, devo esse doloroso inverno de minha vida, não ter se tornado ainda mais cinzento e gelado.
Da maneira deles, sem o conhecimento da psicologia moderna, mas com o carinho que havia em seus corações, me ofertaram aconchego e alento.

Vê-lo ali naquele leito de hospital, tão fragilizado pelos anos e pela doença, me deixou pesarosa.
Mas, me confortou ver a lucidez, e a boa memória de meu tio. Ele recordou de fatos corriqueiros, de nossas vidas.
Entre uma colherada de mingau de aveia e outra, ele me disse: "Lembra quando você ia embora a noite de minha casa, e a tia dizia pra você gritar, quando chegasse no portão da casa da vó, avisando que havia chegado".
Nessa hora rimos, eu e ele, pela saudosa lembrança. Pois, de fato, era dessa forma mesmo, que eu, voltava pra casa de meus avós, nunca entrava sem avisar a tia, e a maneira era gritando: "Tia cheguei".
Tempo bom, que deixa saudade no coração.



(Foto da Autora)
Lenapena
Enviado por Lenapena em 28/03/2012
Reeditado em 28/03/2012
Código do texto: T3580395