_Fractais

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As relações humanas ficaram mais catalisadas e os diálogos, assim como os papos virtuais, sofreram supressões onde as entrelinhas valem muito mais que o dito ou escrito.

No processo de abreviação, aposto que os criadores do “Vossa Mercê” ficariam chocados ao ouvirem um “você” dito sem qualquer cerimônia. Imaginem, então, como se sentiriam esses vanguardistas ao abrirem o Personal Computer – PC e receberem de um amigo virtual o singelo e sem graça: “Oi! VC está bem?”.

No mesmo diapasão, como se sentiria um mancebo do Século Romântico ao ouvir da mais encantadora e recente de musa despretensioso: “Fui...”. Será que antes da sublimação da moça ele processaria toda a mutação existente: “Vamos em boa hora”... “Vambora”... “Fui...”.

Os tempos realmente mudam. E as pessoas também! Feliz ou infelizmente – Princípio da Relatividade –, a parcimônia é substituída ou compensada pela riqueza ficcional da imaginação.

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– Bom dia!

– Bom dia, senhorita! “Sei não, mas esse “Bom dia!” está muito dado... Essa aí está a fim de coisa!” – pensa, maliciosamente, seu Nico, quarentão morador do centenário bairro da Vila.

– Oi! Grande Nico, tudo em cima?

– Oi!, responde o grande Nico, assustado como menino traquino que enfiou o grampo de cabelo da mãe na tomada. – Sei não, mas esse aí não tem pisada firme e assim, andando com os cotovelos pra dentro, tem coisa! Tem coisa! Grande é o raio que o parta, ora! Aposto que se eu falar “Olhe a barata!” ele pula gritando, chocadíssimo, colando a mão esquerda junto ao corpo, rente ao coração; mão dobrada em concha, formando V, com as pontinhas dos dedos para baixo.

Tudo se volatilizava rápido demais na cabeça do Nico. Era tudo pensamento; nada verbalizado... O homem vivia de desabafos autogeridos.

– Bom dia, Ni! – diz uma mocinha linda, sorrindo como o alvorecer da vida!

– Ih! Aí tem coisa... Esse Ni é íntimo demais. Nunca dei bola pra essa garota! Por que tanta intimidade, de repente? Ni significa dois. Será que, indiretamente, ela está sugerindo um ménage à trois? Mas quem seria o terceiro elo dessa safadeza?

– Bom dia, Nini! – insiste a moça. – E as novas?

– Nini? Dois mais dois são quatro! Um culto à Baco, bacanal? Seria demais pra esse coroa aqui... Melhor é não responder nada e sair de mansinho. Mas espera aí: “E as novas?” Será que, subliminarmente, ela quer saber se gosto de novas? Quatro novinhas só pra mim... E saiu correndo!

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À noite, nas proximidades de casa, no bar da Ninca, prima dele, Ni/Nini está tomando refrigerante com amigos. Chegam dois negros altos, acompanhados de outros dois rapazes brancos, e todos, em uníssono, avisam aos presentes:

– É um assalto! Todos em pé, mãos à cabeça! Encostem-se, de costas pra nós, na parede!

“Caraca, pensa o Ni” – Em pé e de costas pra dois negrões...

Enquanto Ni divagava, suando frio com as perspectivas futuras, um dos negros, batendo-lhe nas costas, fortemente, esbraveja:

– Passe o anel, coroa!

Silêncio sepulcral.

– Eu disse pra passar o anel! – repete a voz.

Um turbilhão de pensamentos invade o sofrido eu lírico do velho Ni.

“Puxa vida! Quarentão, virgem na retaguarda e agora assim, de costas... Se pelo menos fosse um dos branquinhos a pedir-me o anel, mas...”.

– Tá de saca, né! – insiste o negão.

– Não, tô não, imagina! Estou diferindo minha angústia. Tem negociação? É que assim, sem carinho, nenhuma preliminar, sabe? Toda primeira vez é difícil!

– Nunca foi assaltado, coroa?

– Nem assaltado nem...

– Isso na sua mão, no dedo, não é anel de doutor?

– Ahn! Mão? Dedo? Anel? É sim, é sim! Sou doutor, amiguinho! Anel vermelhinho... “Se pelo menos fosse da área de saúde, daquele povo do anel verde, quem sabe o meliante tivesse medo de mim. Afinal, assalto nos causa raiva e você sabe, né, esse povo verde quando tem raiva...”.

– Então passe logo esse anel vermelho, doutor!

– Com todo prazer! O anel é todo seu, morenão!

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Os inesperados convidados fizeram a festa – deram até um “Fui...” estilizado – e partiram.

No bar, os assaltados, ao se solidarizarem na dor, sentiram falta do velho Nico que, do banheiro, teve a boa vontade de tranquilizar a todos:

– Estou chegando! É que me borrei... Senti comichão a invadir-me o corpo todo com as ponderações dele. Que fantasia frustrada, tchê!

– Tchê, Nico? Virou gaúcho?

– Não, mas foi por muito pouco. Se ele tivesse ficado mais um pouco...

Crato-CE, 12 de junho de 2011.

12h01min

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 27/03/2012
Código do texto: T3579558
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