CABEÇA  RASPADA, URUBU CAMARADA...

 

 

Hoje, a custo acreditei ser a minha pessoa naquela foto. Sinceramente, aquele outro da foto não era eu. Careca, emburrado, metido em certa blusa quadriculada, aparentava nas feições a um malfeitor sumamente contrariado. Embora todas as evidências e confirmações pessoais contrariassem minhas dúvidas, ele seria realmente eu? Pus-me a escarafunchar o passado até que... a cadeira Dabi Atlante do “seo” João Silva invadiu-me a memória. Acomodado sobre ela, sentado sobre pequena tábua, pouco a pouco descortinava à mente o grande espelho frontal a ela, ladeado por dois aparadores onde se viam tesouras, a navalha junto a sola de amolar, a terrível e torturante máquina manual de cortar cabelos que mais os arrancavam que propriamente cortava-os, copo de espuma, loção (água velva), panos, e o tradicional avental que nos colocavam à volta do pescoço.

A ordem veio de meu tio.  Que o Sr. João Silva raspasse a minha cabeça por conta de certa peraltice cometida. Havíamos passado da conta.

O trieiro que partia do quintal de d. Nenê do Toquinho  levava às margens do Cascavel; descia por Leve declive invariavelmente coberto por floridas vassourinhas que, com seus ramos maleáveis e resistentes, constituíam, àquela ocasião, nos arranjos habituais que os meninos faziam: amarrar as ditas ramagens por debaixo provocando o tropeção e a conseqüente queda dos caminheiros. Foi o que fizemos na esperteza de derrubar alguns colegas que banhavam no córrego abaixo. Céleres, subimos a mangueira próxima e espreitamos.

Mal havíamos acomodados em seus frondosos galhos, surgiu à nossa vista --- e para  nossa surpresa --- uma das lavadeiras do Toquinho, antecipando a vinda dos meninos. Bacia à cabeça, amparava ainda, com dificuldade,  certo balde com as peças lavadas; a passos trôpegos, subia arfando a pequena ladeira, movida por arquejante esforço. Infelizmente deu no que deu e não tivemos a grandeza de correr para avisá-la, tampouco acudi-la no chão.

A corrida espavorida veio nos delatar.

Primeiro a sova, depois o barbeiro.

--- Muscarré, escovinha ou americano?

--- Careca! Respondeu secamente meu tio.

--- A troco de quê, “seo” Geraldo? Arriscou novamente o barbeiro.

--- Raspa tudo! E numa atitude de definição e aborrecimento saiu do salão.

Sabem por quanto tempo ouvi aquele refrão famoso “Cabeça raspada, urubu camarada, levou chicotada no me’i da boiada!”  Olha, foi por muito tempo. A foto, salvo engano, foi desse dia.

Em que pese os percalços da infância, faço eco a C. Dickens ao exclamar: “O que eu não daria para ter de volta os meus dias de criança!”