MARCAS INDELÉVEIS DO MAGISTÉRIO

Alguém já disse, e eu digo com minhas palavras: “existem uma semelhança e uma diferença entre um matemático e um professor dessa ciência. A primeira é que ambos sabem muito sobre esse assunto, e a segunda é que o docente, ao se licenciar, teve de estudar psicologia e didática. Isso o capacita para saber como os alunos aprendem e para escolher quais estratégias de ensino utilizar.”

Ser professor, então, é muito mais do que apenas ter sólidos conhecimentos sobre um determinado assunto, é entrar nas salas de aula com entusiasmo, tendo uma série de importantes informações a transmitir (se assim não for para que ensinar?), sabendo que os diferentes sujeitos que estão à sua frente, durante 50 ou 100 minutos, têm interesses e níveis de desenvolvimento diferentes.

A tarefa não é fácil e a sociedade, equivocadamente, pensa que qualquer um pode assumir uma sala de aula. Talvez por isso, o devido reconhecimento não se revela na remuneração e as consequências são nefastas para todos, pois nem sempre quem tem cognição suficiente para cursar licenciaturas se apresenta para tal. Dessa forma, quem acabam prejudicados são os inocentes que lhes são confiados.

Apesar de termos de conviver com o desprestígio e com a explícita ou a velada culpa que nos imputam pelos desmazelos da educação, ser professor é ter o privilégio de transformar o bicho bípede e falante em ser humano, em GENTE, com competência e autonomia suficientes para conduzir, adequadamente, a sua própria história.

Além disso, temos como recompensa maior as boas memórias dos episódios vividos em salas de aula e o melhor: o eterno carinho e amor de alguns alunos. Pois bem, foi pensando nisso que nessa crônica eu relato uma história vivida pela professora de Língua Portuguesa e Literatura, Maria da Graça Siqueira Pereira, a Kita, e um antigo aluno seu, de uma oitava série, na escola Ceisc, no início dos anos 90.

A fim de exercitar a escrita, a criatividade e o raciocínio dos alunos, em fevereiro, essa querida amiga propôs-lhes que, durante aquele ano, cada um escrevesse um livro. A cada mês ela buscava ler o que os meninos já haviam produzido, a fim de reorientá-los para que as obras ficassem cada vez melhores.

O tal discente, que sempre fora extremamente inteligente, mas avesso a questões impositivas, nunca lhe apresentava nada. Por isso, no início de dezembro, a referida professora lhe deu um ultimato: “Querido, eu amo você, mas o seu prazo está se expirando. Se depois de amanhã você não me apresentar o livro que nós combinamos que todos fariam, eu terei de reprová-lo na série.”

Vendo a água chegar no seu traseiro, ele, que era um dos poucos de Linhares que já tinham computador, pensou, pensou, pensou, pensou, pensou, pensou... trabalhou, trabalhou, trabalhou e no dia combinado apresentou à professora não apenas um, mas TRÊS livros espiralados.

O primeiro chamava-se “A Cavalgada”. Tinha 30 folhas com o seguinte texto: Pocotó, pocotó, pocotó, pocotó... (cavalo correndo), mais 30 folhas com o texto: Toc, toc, toc, toc... (cavalo trotando) e ao final apenas uma frase: Oooooooooooa!, Oooooooooooa! (parando o animal).

Na capa do segundo lia-se “Minha vida”. O volume era dedicado aos pais em agradecimento por terem cuidado dele quando “tivera amnésia”. Esse tinha 150 folhas em branco e na última apenas uma frase: “E então, eu sofri um acidente e perdi a memória”.

A terceira “obra” intitulava-se “Incêndio na Casa de Fogos”. Esse era composto de umas 200 folhas chamuscadas, colhidas da fogueira que ele fizera para “decorá-las”, e no final apenas uma frase: “Só sobrou isso do incêndio!”.

No dia da entrega, ao conhecer o teor das “obras”, Kita não sabia se ria ou se o reprovava. O caso virou uma celeuma na escola. Reprová-lo pela petulância? Aprová-lo pela criatividade? Aquilo seriam livros? O que dizer de obras surrealistas? Como recriminar as licenças poéticas? Elas só podem ser feitas por autores consagrados? Os professores opinaram divergentemente, os alunos “certinhos” se indignaram, a Direção chamou os pais, e após uma série de reflexões frente ao aluno, ele foi aprovado.

Não creio que os seus colegas de sala se tornaram escritores, mas a criatividade e a inteligência daquele menino fizeram dele um bom homem e um grande profissional da informática, sendo respeitado pelos amigos (nos quais me incluo) e por todos que precisam de seus serviços.

Não sei se minha amiga é capaz de se recordar dos nomes de todos os alunos daquela turma, mas o desse ela jamais se esquecerá: Adilson Cápua!

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 23/03/2012
Reeditado em 20/03/2015
Código do texto: T3571760
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