O Imperador Marco Aurélio e o meu cafezinho



                                    
                        Tive uma amiga que sempre sonhava com seu irmão mais velho. O interessante é que a cena, muito estranha,  era sempre a mesma. Os dois atravessavam um enorme túnel no meio de um deserto e depois de muito andarem chegavam a uma espécie de oásis. Esse sonho tinha mais detalhes, que não me lembro mais. Pois bem, amigos, já depois de adulta, e ainda sonhando o tal sonho, a minha amiga certo dia soube pelo irmão que ele sonhava a mesma coisa. Quando ele começou a contar o sonho, minha amiga mandou que ele parasse e continuou a narração, o que causou espanto ao irmão.
                        Há muita coisa inexplicável  neste mundo.  Digo isso, amigos, para lembrar  que de vez em quando faço uma crônica sobre determinado assunto e dias depois vejo um cronista muito querido abordar o mesmo assunto e até com alguns detalhes parecidos.
                        Darwin estava, secretamente,  escrevendo a “Origem das espécies” quando recebeu um trabalho de outro biólogo, chamado Wallace, que praticamente repetia a tese do grande Darwin. Isso fez com que Darwin apressasse  a publicação do seu livro,  com medo de ser suplantado pelo Wallace, que acabou esquecido e hoje pouca gente sabe da história dele.
                        Eu já tive a surpresa de ver um texto do grande  psicólogo Jean Piaget, homem de conduta honestíssima, cujo assunto também tinha sido abordado por outro cientista e, pasmem,  vários trechos com praticamente as mesmas palavras, sem que tenha havido contado entre eles, o que poderia parecer um plágio.
                        São sincronias misteriosas (pensamentos simultâneos) em que mentes diferentes sentem de maneira igual e produzem obras parecidas. A do Darwin com o Wallace é um exemplo notável.
                        Mas por que resolvi defender essas coincidências?  Primeiro, porque na minha intimidade tenho a alegria de privar com uma querida pessoa onde esse fenômeno que chamo de sincronia mental acontece quase que diariamente e, segundo, porque venho pensando há muito tempo em falar sobre o grande Imperador romano Marco Aurélio, cuja leitura do seu livro “Meditações” me absorveu pelo menos dois anos de minha vida. Ele foi o último dos cinco bons imperadores de Roma.  Os pensamentos dele são atualíssimos. Pois o nosso não menos queridíssimo Jabor nesta semana nos lembrou esse imperador-filósofo daquele jeito dele, irreverente, que a gente conhece.
                        O que quero dizer é que não sou cânone, explicando melhor, não vou repetir a voz do outro, como no século XVI, os compositores criavam um tema, cuja voz antecedente era imitada exatamente igual por outras vozes posteriores. A minha conversa aqui, com meus queridos amigos, neste meu retorno no Recanto, é outra. Talvez eu esteja querendo falar sobre a coragem de viver...
                        Pois bem, meus amigos e amigas, o nosso Marco Aurélio, no século III da nossa era tinha uma preocupação com a ética do governante e meditava constantemente sobre a vida, cultivando um estoicismo admirável. Aliás, para se entender o estoicismo, passo a palavra para o próprio Marco Aurélio, quando cita várias pessoas que ele tinha como exemplos marcantes. Ao falar de Máximo, ele nos diz: “Máximo tinha o domínio de si mesmo e não titubeava em matéria nenhuma; fortaleza nas vicissitudes, notadamente nas enfermidades; a feliz fusão da doçura e da imponência em seu caráter; o cumprimento das suas obrigações sem queixas; o crerem todos que ele pensava como dizia e não havia maldade em seus atos; a ausência de espantos e de medos; a beneficência, a indulgência e a lealdade; o dar antes a impressão de não entortado que de endireitado”.
                        No livro IV das Meditações, o Imperador consegue perceber o que é a vida, essa vida que nós, às apalpadelas, vamos também começando a entender, quando nossas ilusões começam a desmoronar. Dizia ele: “Volta a atenção para a rapidez com que tudo se esquece, para a extensão do tempo infinito num sentido e no outro, para o vazio da repercussão, para a volubilidade e falta de critério dos aparentes aplausos e na estreiteza do espaço onde se circunscrevem. A terra toda não passa de um ponto, e que diminuto cantinho dela é realmente a parte habitada! E ali quantos são e quem são os que te  hão de louvar?
                        "Por fim, lembra-te de teu retiro para dentro dessa nesga de terra tua e, antes de tudo, nada de tormentos e contensões: sê livre e encara as coisas como um varão, como um ser humano, como um cidadão, como um vivente mortal." 
                        E completa esse pensamento de maneira soberba: “ Entre as noções mais à mão, sobre as quais te inclinarás, estejam estas duas: primeira, que as coisas não atingem a alma; param fora, quietas, e os embaraços vêm exclusivamente dos pensamentos de dentro; segunda, que tudo quanto estás vendo se transformará dentro de instantes e deixará de existir. Pensa constantemente em quantas transformações tu mesmo presenciaste. O mundo é mudança; a vida, opinião”.
                        O estoicismo nos ensina a suportar a vida, a suportar a finitude da vida, melhor dizendo. É também do Imperador essa frase, que dois mil anos depois, foi aproveitada pela psicologia cognitiva de nosso tempo: “ Se uma causa exterior te magoa, não é ela que te molesta, mas o juízo que dela fazes”. São nossos juízos, na maioria das vezes equivocados, que nos fazem sofrer e não os fatos propriamente ditos.
                        Essa filosofia foi interpretada como de resignação, no entanto, me parece uma filosofia extremamente realista, que enfrenta de frente a efemeridade da vida e que não gostamos de encará-la, como ela é realmente.
                        Estudei muito essa filosofia para não desesperar e não ter medo da morte.           
                        Confesso que fiquei por muitos  anos um homem “zen”.  Tudo bem, acabamos morrendo com uma bruta coragem, mas onde fica a emoção? Sou um irremediavelmente apaixonado pela emoção, mesmo que ela me leve para o buraco... No final, vamos todos para o buraco, mesmo!
                        Na verdade, acabamos por adotar uma filosofia de vida que se encaixe em nosso temperamento. E meu temperamento me pede uma certa excitação, um certo perigo, uma certa aventura nesse jogo da vida...
 
                        No tempo do Marco Aurélio, não se conhecia o café. Esse cafezinho que tomo desde os meus dois anos de idade. Eu mesmo exigia acompanhar meu pai no bar da esquina e uma xícara de café bem quente eu também tomava, junto com ele. Penso que a filosofia estóica  padeceu de uma certa sonolência. Ela me serviu e ainda serve muito na minha vida, mas faltou o cafezinho para torná-la mais esperta, mais viva.
                        Segundo a lenda, um pastor de ovelhas notou que seus animais ficavam mais alegres e mais espertos quando mastigavam os grãos de café.
                        Estou a ponto de refinar esse meu belo hábito, pois  aprendi com  meu primo Clóvis a  moer, na hora, os grãos do café, que, segundo, o primo, o sabor  fica divino.
                        Está bem!  Aceito a finitude da vida, não tem remédio,  mas com alguma emoção, por favor!  Jamais deixando de tomar  meu adorável cafezinho, e,  sempre que possível, saboreando  uma enxova  grelhada,  pescada pelo meu amigo Máximo, não o romano, mas um simples pescador brasileiro, da colonia de pescadores do Posto Seis em Copacabana, homem pobre,  encarando  o mar todos os dias,   e que nos dá exemplo de coragem,  enfrentando a vida como ela é...  Ele ainda vê magia na vida!