Uma Varinha de Marmelo
O Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Aracaju, SE, manifestou-se recentemente sobre a programação da TV brasileira. Atribuiu-lhe uma “precisão satânica” na destruição da “sacralidade da família, da infidelidade conjugal, do respeito dos filhos para com os pais, da castidade, da indissolubilidade do matrimônio, do amor temeroso para com Deus, etc.” Defendeu inclusive a censura, mas “a censura com amor, a censura com explicação de motivos”. Que dessa forma, segundo ele, não é um mal, mas um bem.
A programação da TV brasileira efetivamente poderia ser melhor. Programas como o BBB e a grande incidência de novelas, praticamente em todos os canais abertos, poderiam ter menos espaço. Mas a grande massa não tem condições de exigir uma programação melhor. Quantas livrarias temos no Rio de Janeiro? Quem de fato se preocupa com os garotos que nos semáforos correm pra trás e pra frente com suas balas para pendurá-las nos retrovisores dos automóveis? Serão os ocupantes da Gaiola de Ouro, a chamada Câmara dos Vereadores, muitos dos quais de altíssima periculosidade? Serão os ocupantes do Senado, que ocupam uma linha telefônica privada para conversar amenidades com amigos não tão amenos ou confiáveis? Ou será a Igreja Católica, que não abre as portas de seus colégios, de mensalidades caríssimas, quando a população pobre procura abrigo durante dias de enchentes?
Por outro lado, enquanto não se atinge um nível de exigência que leve os detentores do poder, de quem tradicionalmente se aproxima a Igreja, ao estabelecimento de políticas, programas e medidas voltadas realmente para o benefício da coletividade, e não para a realização pessoal, talvez se consiga chegar ao melhor através da proximidade com o que é ruim. Além disso, quando estabelecemos parâmetros ou padrões de comportamento que achamos que os outros devem observar, e que nem sempre temos condições de sustentar (onde estão os crimes e abusos sexuais cometidos por padres e religiosos pelo mundo afora?), corremos o risco de oferecer um discurso preconceituoso e inconsistente. E possivelmente com marcas de hipocrisia.
O mundo caminha pra frente, em que pese os muitos passos pra trás que ele dá. Não podemos exigir que duas pessoas vivam juntas “até que a morte os separe” só porque achamos que isto sustenta a sacralidade da família. A negação a esse tipo de assertiva, infelizmente ainda hoje administrada a quem se casa, é tão fundamental e verdadeira quanto o reconhecimento dos direitos da mulher. Aliás, a Lei Maria da Penha pode ter tido o apoio, mas certamente não teve origem em qualquer atitude eclesiástica. Foi preciso que uma mulher vivesse na carne (a proximidade com o ruim) as experiências brutais de uma relação conjugal para superá-las e fazer com que resultassem num programa que viria beneficiar pessoas do mesmo gênero. Chegando-se ao melhor.
Há poucos dias, numa entrevista na TV, o consagrado escritor Paulo Coelho declarava que tinha apresentado as drogas ao célebre Raul Seixas. Hoje, certamente longe delas, Paulo Coelho vive na Suíça e é um dos escritores brasileiros que mais vende livros (um exemplo talvez do bom, do certo, do correto). Mas não podemos dizer que o incomparável Raulzito, com suas letras e a inconfundível poesia até hoje cantadas em comunidades como a da Cidade de Deus, e muitas outras, seja um exemplo do mau, do errado ou do incorreto. Por ter desaparecido em decorrência de alegados excessos com as drogas.
Amor temeroso de Deus ou “temor amoroso de Deus” parece que dá no mesmo. Porque o amor não compreende ou incorpora o medo. Assim como o Deus que imaginamos, senhor de tudo e até dos nossos desejos, não pode admitir que Dele tenhamos medo.
No que se pode considerar hoje uma indústria religiosa, não conseguimos distinguir grandes diferenças entre um tipo ou outro de igreja. Tendo sido a própria Santa Madre Igreja, até há algum tempo, a precursora desse mercado. Que atualmente se expandiu com a proliferação acentuada de cultos evangélicos e outros do tipo, muitos deles de objetivos duvidosos ou inconfessáveis. O filão é promissor. Muita gente ficando rica com isso. Nessa condição atual, em que “templos surgem como cogumelos”, as igrejas ou associações desse tipo “não nos podem oferecer nenhuma surpresa agradável”, no dizer de uma amiga poeta.
Pronunciamentos como o do bispo, ainda que sinceros, trazem a marca da intolerância, que caracteriza as pessoas que impõem aos outros o que elas acham mais adequado, porque “estou pensando no melhor pra você”. Foi assim com a nossa colonização. Os índios, que tiveram a sua (nossa) terra invadida, e não descoberta, foram obrigados a aceitar uma religiosidade que nada tinha a ver com a deles. Pessoas que viviam em harmonia e não conheciam o valor do ouro e nem o da mentira.
E tudo é sempre dito ou feito em nome de Deus. Ou de Jesus. Criando-se uma confusão danada na cabeça das criaturas humanas, das criaturas de Deus. Esquecem-se os religiosos que as criaturas de Deus foram criadas com a capacidade do discernimento, com esse computador sempre atualizado que temos dentro de nós e que máquina alguma irá suplantar. E esse discernimento independe de eu achar “que você deva concordar comigo ou seguir os passos que trilho”, embora isso até possa ocorrer.
O que podemos enfatizar é a autonomia do ser humano, pra que ele mesmo possa fazer as suas escolhas, através de um uso mais proveitoso da ferramenta que Deus lhe deu. E ir se concertando ou se aperfeiçoando ao longo da sua existência.
Não adianta ficarmos segurando a verdade. Ela está no ar e às vezes muda de cor.
Por fim, devo dizer que não temo enganar-me: se Jesus chegasse por aqui agora e fosse à Aparecida, às margens da Dutra, ficaria envergonhado de ver o pátio da Igreja transformado num amplo supermercado. E expulsaria os comerciantes com a sua varinha de marmelo.
Rio, 20/03/2012