O insepulto
Ia cedo para o trabalho. Subia a ladeira daquela movimentada avenida do centro da cidade. Não viu, e não teve como se desviar do caminhão Mercedes Benz carregado de tijolos dirigido pelo João, que passara a noite, e a madrugada bebendo no cabaré da Baiana.
A velha Monark distante cerca de 20 metros do local do impacto. Pedro, estatelado no chão, a cabeça quebrada. Teve traumatismo craniano, morreu na hora.
João, o motorista, tonto pela pancada e ainda sob o efeito da cachaçada da noite anterior, deixou o local rapidamente sem prestar socorro.
Três funerárias e seguradoras disputavam o corpo, ainda quente, no chão. Estavam de olho no seguro DPVAT. Ali, na real, estava a possibilidade deles faturarem uma boa grana, mais de 20 mil reais.
“É meu, cheguei, primeiro”disse o sujeito que comandava uma das agências funerárias ali presentes.
Ao lado do cadáver, o desespero de Benta , companheira de 25 anos do “ De cujos” mulher sem lenço, sem documentos, sem filhos. Só uma casa, longe, lá em cima do morro.
- Quero o corpo do meu marido! A Funerária do seu Antônio, faz mais barato.
-Negativo! Não vou liberar. Além do mais, nem sei se a senhora é mulher dele, mesmo. Mostre-me os documentos” vociferou o esperto empresário dos mortos.
De fato não havia documentos, nem registro de nascimento Benta, tinha.
Na delegacia a mulher prestou queixa.
-Seu delegado, o Zé das Mortalhas não quer liberar meu marido para ser enterrado.
- Não se preocupe, vamos resolver isso, já, já!
Meia hora de conversa com o dono da Funerária o delegado retorna com o pensamento já mudado, logo ele que pensou até em prender o cara.
- Tem jeito não, dona Benta. Ele tem razão. A senhora e o marido eram novos na cidade e sem ter como provar que era, de direito, casada com ele não há como liberar o corpo. E , ainda tem uma história que a senhora não sabe. A mãe dele fez contato. A velha tava sumida havia 25 anos”
- Mais o Pedro sempre disse que não tinha, mãe, como é que agora...”
-Não sei, só sei que ela quer participar do sepultamento do filho. Só vamos enterrar quando ela chegar, ” disse Zé da Mortalhas, ao lado do delegado, numa visível manobra para ganhar tempo e arrumar a papelada do seguro.
Uma semana depois, nada da suposta mãe de Pedro aparecer. O corpo dele permanecia untado com formol num caixão de zinco nos fundos da funerária.
Benta chorava, ninguém ouvia seu choro. Revoltou-se com a situação. Último apelo: decidiu ir á rádio da cidade denunciar o caso. Falou de todo mundo. Do dono da funerária, do delegado, enfim , do seu sofrimento e que queria mesmo era um descanso para o marido.
No dia seguinte pela manhã, um carro funerário chegava com o corpo de Pedro no cemitério para ser, enfim, enterrado.
O motorista, o coveiro, o dono da funerária o delegado e a chorosa Benta eram os únicas almas vivas naquela necrópole .....Para garantir o enterro do marido foi obrigada a assinar, sem ler, um monte papel.
Na ultima pá de terra , de longe um grito:
“Pare o enterro! Cadê os papeis do meu filho”. Era a mãe de Pedro, que chegara acompanhada de um homem vestido de paletó. Não se sabia se advogado, ou agente de seguro.
Nenhuma lágrima, nenhuma pergunta sobre como o filho morreu. Dona Concita queria mesmo era a papelada do filho para também pleitear o seguro.
Pedro pode finalmente ser enterrado.
A mãe dele, passada para trás, briga até hoje pelo seguro do filho. Benta, sem lenço, sem documento, continua na casa do morro, sozinha, vivendo das lembranças dos anos que passou ao lado do Diquinho, como ela chamava o marido na intimidade.