O Chaveiro Cego

Numa dessas tardes modorrentas de domingo, em que não se sabe bem o que fazer, ir para o computador, ler um bom livro ou tirar uma soneca (o jornal já foi lido, incluindo o caderno cultural de cabo a rabo), ligo a televisão despretensiosamente, já pronto para desligar. Pego um filme no seu início, com o bom e simpático ator Jack Black conversando com um homem bem mais alto do que ele dentro de um elevador enguiçado e parado. A conversa é interessante, é sobre a dificuldade de se conquistar as mulheres desejadas. O personagem de Jack Black queixa-se de que as mulheres bonitas o rejeitam, mas o outro homem, uma espécie de "showman" de TV dedicado a auto-ajuda, lembra-lhe de que ele não é exatamente um galã, que ele poderia estar sendo exigente demais e que deveria ver mais a beleza interior das pessoas. Por causa do ator e da conversa, interesso-me pelo filme. Vou até o caderno de amenidades do jornal para saber que filme é. Chama-se "O Amor é Cego", de 2001, dos irmãos Bobby e Peter Farrely. É uma comédia romântica questionando de forma dúbia a ditadura da beleza. Como é classificado com três estrelas, resolvo que merece que perca nele mais um pouco de meu tempo.

Mas a história é realmente interessante e prendo-me a ela, querendo saber como termina. O personagem de Jack Black, devido a um conselho questionável recebido do pai no momento da morte deste, quer relacionar-se apenas com mulheres atraentes. Mas seu próprio biótipo faz com que elas o rejeitem. O "showman" de TV é também uma espécie de hipnoterapeuta, que, diante da reclamação do personagem vivido por Jack Black, hipnotiza-o, ainda no elevador, deixando-o numa condição estranha. A partir daquele momento, as pessoas feias ou deficientes fisicamente apareceriam para ele sempre como pessoas bonitas. O personagem de Jack Black conhece então uma moça interpretada por Gwyneth Paltrow, uma atriz muito bonita. Surpreendentemente para ele é também simpática e inteligente e acredita ter encontrado a mulher ideal. Na verdade a mulher é imensamente gorda, mas o efeito da hipnose o ilude. O amigo estranha o interesse dele e tenta alertá-lo, em vão. Ele está apaixonado. Depois de algumas peripécias, o amigo descobre o que acontecera e consegue com o hipnoterapeuta desfazer a ilusão. O personagem volta a ver as pessoas como são na realidade. A linda menina que o cativara num hospital tem o rosto deformado por queimaduras. Os amigos da moça com quem interagira, fortes e bonitos na ilusão, são deficientes e feios. Descobre, ainda por cima, que o próprio amigo tem um toco de rabo atrás, do qual tem vergonha e que o faz afastar-se das mulheres. A conclusão dele parece ser a de que as pessoas têm defeitos, mas compensam-nos com outras qualidades. O final emociona, pois o personagem, apaixonado na verdade pela personalidade da mulher gorda, aceita-a e tudo acaba bem.

É certo que os filmes hollywoodianos caracterizam-se pelos finais sempre felizes, mas, apesar de torcermos por eles, sabemos no íntimo que são fantasiosos. Esse filme, porém, levanta uma questão importante ao tratar do preconceito com que tratamos os "diferentes", isto é, aqueles que não se enquadram nos padrões de beleza ou de normalidade impostos pela sociedade: os gordos, os deficientes físicos, os feios. Por mais que tentemos disfarçar, é inevitável que os consideremos "inferiores". Só quando pessoalmente constatamos que essas pessoas, em muitos aspectos, são tão capazes quanto ou até mais capazes do que as pessoas ditas normais, o preconceito se desfaz.

Foi o que aconteceu comigo, estranhamente, logo no dia seguinte, segunda-feira. Costumo levar, periodicamente, uma irmã minha com deficiência física parcial, por conta do trauma de um AVC, a uma clínica de fisioterapia. Como a clínica fica próxima ao centro da cidade (Marília,SP), costumo fazer outras coisas por perto enquanto ocorre a sessão, que dura mais ou menos uma hora. Após deixar minha irmã na clínica, resolvo ir a um salão de cabeleireiros perto dali, para cortar o cabelo. Deixo o carro, meu velho Corsa, a uns três quarteirões do salão, para fugir da zona azul e da dificuldade de encontrar uma vaga mais perto (e ainda aproveito para uma saudável caminhada).

O corte de cabelo dura uns vinte minutos e logo estou de volta ao carro. Ao tentar abrir a porta, uma surpresa desagradável. A fechadura trava, não consigo girar a chave. Tento, tento e nada. O que fazer? Penso na minha irmã, como levá-la de volta? Bom, ela que me espere. Em último caso, chamo um táxi. Quais minhas alternativas? A concessionária da Chevrolet está longe, teria que ligar para lá e esperar a boa vontade de seu serviço de socorro. Pelos meus cálculos, o chaveiro mais próximo está a uns quinze quarteirões dali. Também dependeria do seu serviço de socorro estar disponível. Do outro lado da rua tem um estacionamento, com um senhor na entrada. Resolvo ir até lá perguntar a ele se conhece algum chaveiro por ali.

Para minha surpresa, ele diz que tem um chaveiro na rua transversal próxima, logo virando a esquina. Incrível a minha sorte, o chaveiro está a uns cinqüenta metros dali.

Na casa indicada, estreita, a fachada exibe dizeres anunciando ser ali uma associação de deficientes físicos. Acho bem estranho, apesar de haver na calçada, próximo à guia, um desses pilares de metal móveis de anúncio, onde está escrito "Chaveiro". Indicam-me uma sala no fundo da casa, acessível por um corredor descoberto. Lá dentro algumas pessoas conversam. Um senhor sentado numa mesa, de óculos escuros, levanta-se de imediato, prestativo, quando pergunto pelo chaveiro. Explico-lhe meu problema. Ele então diz que vai tentar resolver, enquanto pega uma maleta de ferramentas. Enquanto vamos saindo da casa e conversando, um jovem o acompanha e o auxilia no caminho. Só aí é que reparo, surpreso, que o chaveiro é cego. E entendo agora porque está ali, naquela casa dedicada a deficientes físicos.

Mas digo a mim mesmo que o fato não me importa, desde que ele resolva o meu problema. Ao chegarmos no carro, rapidamente coloco a chave na fechadura, antes que o chaveiro perceba. Este pergunta porque a chave está ali, digo-lhe que o coloquei ali agora. Ele força a chave, diz que pode ser um problema elétrico, pois eu havia lhe dito que as fechaduras são interligadas eletricamente. Então estou na roça, penso. Mas ele me diz que pode ser apenas travamento entre as peças internas. Saca de um tubinho e injeta um pouco de pó de grafite no buraco da fechadura, enquanto pede que eu faça uma divulgação do seu trabalho. Diz que é muito difícil para ele arranjar serviço, por causa do preconceito. Penso então que ele ali, tentando resolver meu problema, está com uma coragem e uma responsabilidade muito maiores do que as de uma pessoa normal, pois uma falha sua irá reforçar de forma contundente esse preconceito do qual ele mesmo tem consciência. Comento com os dois que um cego desenvolve normalmente outros sentidos para trabalhar com o que gosta e acho que no caso de um chaveiro, o sentido trabalhado é o da audição. O jovem diz que não, o sentido mais trabalhado é o do tato. Faz sentido, penso. Talvez seja preciso manusear todas aquelas pequenas peças no interior da fechadura. Ou as reentrâncias da chave.

E aí, após mais algumas forçadas, a fechadura finalmente se abre. Um alívio ver aquela trava por dentro da porta subindo. Após mais alguns testes, o chaveiro cego me diz que o problema era mesmo de travamento e que está resolvido. Ele fecha sua maleta, peço-lhe um cartão e pergunto-lhe quanto foi seu trabalho. Ele diz que não é nada, dá-me um cartão. Dou-lhe R$10,00 e ele me agradece. Despedimo-nos, eles vão embora.

Vou agradecer pela indicação ao homem do estacionamento, que assistira a todo o processo e a quem revelo que aquele chaveiro ganhara um freguês para futuros problemas.

Chego com tempo de sobra na clínica. Logo após minha irmã entrar no carro, comento com ela o episódio, ressaltando, com entusiasmo, o fato surpreendente do chaveiro ser cego. Ela não se comove muito, não faz comentários.

Aí me lembro de que ela também é uma deficiente física e, mesmo que com um dos lados do corpo semi-paralisado, caminha, cozinha, lava e passa roupas sozinha. A não ser quando precisa de alguém para levar aos lugares, é independente quanto a qualquer outra necessidade. E me pergunto se ela não está conjeturando com seus botões que, no final das contas, seja eu o esquisito da história.

"Postscriptum": Pouco mais de 2 meses após esse episódio, a fechadura da porta de entrada da minha casa apresentou problemas e, consultando o cartão do chaveiro, liguei para o seu telefone. Atendeu-me uma moça e pedi para falar com ele. Ele veio ao telefone e expliquei-lhe rapidamente o problema, sem me identificar. Ele me perguntou se eu não era o proprietário do veículo cuja fechadura ele verificara. Disse-lhe que sim, sem disfarçar minha surpresa (outra) e perguntei-lhe como é que descobrira. Disse-me então que ele identificava as pessoas pela voz. Por um único e breve contato há uns dois meses, minha voz estava gravada em seu inconsciente. Eu, com todos os meus sentidos intactos, talvez tivesse dificuldade de identificá-lo num encontro fortuito na rua. Na crônica, relatando a conversa que tivera no episódio, sugeri que o sentido desenvolvido pelo chaveiro cego talvez fosse a audição, no que fui contestado pelo jovem que o acompanhava. Mas percebi que eu não estava totalmente errado.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 23/01/2007
Reeditado em 19/12/2009
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