Subitamente
SUBITAMENTE
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 21.03.12)
De súbito fez-se noite. De um momento para outro estava escuro que nem breu. Algumas estrelas brilhavam, uma lua se insinuava para breve mas não tanto, pois a fase era minguante e, minguando, ela só surge mais tarde, cada vez mais tarde até praticamente não mais surgir quando se faz nova. Nova, não passa de esboço de lua no céu diurno, uma coisa pavorosa. Não se sabe de esboço de sol no céu noturno.
Fora as estrelas e a promessa de lua, a rua tomava-se da luz esfuziante dos carros, dos postes, das casas (cada vez menos), dos apartamentos (cada vez mais e mais altos). Mas era noite. E era escuro. Disto ninguém duvidava, pois tinha de fato anoitecido assim de repente.
Em verdade, não foi bem assim, se fores honesto conosco e contigo mesmo - o mais difícil, e cada vez mais, é encontrar honestidades vagando por aí. De tão raras no pedaço, são disputadas a tapa, a socos e pontapés, para que aprendam de vez a serem desonestas e safadas como todo mundo. Que é isso de andar honestamente por aí? Pensas que isto aqui é a casa da mãe joana para te fazeres de santo? Ainda mais: fazer-te de honrado, digno e decente em ano de eleição municipal? Era o que me faltava - o que nos faltava -, tem a santa paciência!
O fato é que te embrenhaste pelos meandros de um desses grandes mercados que espalham por aí, e lá tinhas ido, sabes, apenas para comprar um pão decente e honesto, mas decidiste te perder absurda e irresponsavelmente a esquadrinhar a prateleira de doces e chocolates como se te fosse dado consumi-los assim sem um motivo muito consistente e inarredável. Ao saíres, ao cabo de todos os procedimentos inerentes ao mercadejamento capitalista, a noite se fizera, se fechara frente aos teus olhos surpresos.
Olhaste então para o outro lado da rua e viste a fazendola que ali esteve pelos últimos 35 ou 40 anos, tempo durante o qual sempre te propuseste a fotografá-la antes que o dono a vendesse, antes que os herdeiros a torrassem (para comprar carros e fazer festas e ficar sem nada em pouco tempo, bem menos do que esses 35 ou 40 anos em que ela resistiu com seus bois e vacas, suas galinhas e plantações, para o trabalho solitário do pobre velho já doente mas teimoso, teimoso até morrer, como diziam sempre suas noras, genros e cunhados que não se conformavam de saberem-no com uma mina de ouro nas mãos e, no entanto, disposto a sair no frio, na chuva e na lama para tratar do gado como se isso fosse serviço de gente). Mas não, nunca pegaste uma câmara, sequer teu celular de baixa resolução, para fazeres as fotos que sempre te prometias e ali estava, agora: subitamente tudo viera abaixo.
Já não havia mais fazenda, mas uns lotes enormes marcados para a construção de prédios residenciais enormes, com nomes como Maison de France ou coisa assim, com 12, 14, 16 andares para tapar a vista dos morros em volta e com a finalidade única de derramar mais e mais carros, com crianças para a escola e adultos para o trabalho, nas ruas estreitas de sempre que há muito já não davam conta de escoar tanto veículo, onde nem o transporte público, raro, precário e caro, conseguia circular.
Subitamente as coisas mudaram - mudam -, assim como subitamente um dia morrerás - morreremos -, e já devias te dar por satisfeito de não teres sido abortado de aborto espontâneo ou provocado. A partir dali, tudo aconteceria de súbito na tua vida: pouco a pouco, devagar, construindo-se - mas ainda assim dizes que aconteceu tudo tão subitamente que nem tiveste tempo.
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"Aos poucos, retomando contatos."
Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados.