_O fantasma

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O sargento Porfírio era homem destemido. Na década de 80, tornou-se ícone dentro da Corporação, servindo de exemplo para os recém-ingressos na vida militar. Ao redor do nome Porfírio havia dezenas de histórias ontológicas[1]. Salvamentos apoteóticos[2] eram atribuídos a ele; por força do destino (ele era predestinado), participara dos grandes incêndios ocorridos na capital, dando ideias geniais e contribuindo decisivamente para o sucesso das operações; alguns repórteres da cidade, ao se depararem com situações de grave risco, perguntavam aos militares envolvidos na operação se o Porfírio estava de serviço – ele era o divisor de águas entre nós.

O chefe de guarnição de Bombeiros é o equivalente ao comandante de patrulha da Polícia Militar, guardadas as devidas peculiaridades.

Nos anos oitentistas, o chefe de guarnição era “o cara”! Recordo-me do poder do qual se revestia o sargento da PM quando saía às ruas. Comandando as inesquecíveis “pretinhas”, aquelas máquinas tipo fusca, turbinadas, que amedrontavam a bandidagem local, havia poder intrínseco[3] à função. Outra memorável figura era o Cabo comandante de patrulha. Aquele povo tinha poder! Quando os marginas da época escutavam o som estridente da pretinha não se atreviam a desafiar o Estado. Tempos bons... Ah! Que saudade. A autoridade de um sargento era tamanha que certa vez, numa cidadezinha do interior, por ocasião das festividades locais, o capitão comandante do Batalhão de Polícia da região foi convidado. O oficial pôs a túnica e se dirigiu ao local do evento. Lá, curiosos observavam o novo militar, homem novo e garboso, desfilando com o uniforme de gala da Corporação. Entre olhares e elogios, um dos convidados comenta:

– Eita que farda bonita da porra! Pena que não tem as três lapas aqui no braço como as que o sargento usa!

No Corpo de Bombeiros o garbo era o mesmo. A figura do sargento estava revestida de mística transcendente[4]. E para o sargento Porfírio, todo detalhe se revestia de austeridade.

Certo dia, ele, “o cara”, assistindo a um filme de terror, varou madrugada adentro. Era noite fria, escura e chovia muito. Após o término da exibição, deitou. Todos deitaram, esperando o final de mais um plantão de vinte e quatro horas. Porfírio tem dificuldade para adormecer. As cenas são recorrentes. As imagens o atormentam num processo de automatismo inconsciente. Mente conturbada pela força da trama, o chefe tenta cochilar.

As horas se passaram. Três horas da madrugada. Rondante[5]: soldado Trevas. O subordinado, vestindo capa de chuva de cor preta, entra no alojamento para acordar o chefe:

– Sargento! Sargento! Acorde!

Ele, Porfírio, abre os olhos. Não se controlou. Saiu em disparada rumo ao pátio interno do quartel, gritando: Fantasma! Fantasma!

Os bombeiros de serviço acordaram. E o fantasma reapareceu, no pátio interno do quartel, dizendo:

– Chefe, sou eu, SD 667 Trevas, rondante da hora! Há uma ocorrência e todos correram pra viatura. O senhor não vai?

Os homens do fogo não conseguiram esquecer nenhum episódio das inúmeras homenagens prestadas à imagem do glorioso e soberbo Porfírio, mas “o cara”, em detrimento de todo passado de glória, é conhecido pela alcunha de “O chefe das almas”.

... Comentam os mais afoitos que naquela noite Porfírio perdeu o único trem de socorro da carreira militar. Tudo por causa do pesadelo chamado Trevas.

[1] Consideras em si mesmo, independentemente do modo pelo qual se manifestam.

[2] Sumamente elogiosos.

[3] Próprio, interno, íntimo.

[4] Fora do alcance da ação ou do conhecimento.

[5] Que, ou aquele que ronda; vigia.