Controle remoto para cães
Ibirubá, Salto Grande, 03.08.01
Em raros dias encontro uma paz como esta. Os funcionários trabalham, mas não são meus. Não tenho que verificar-lhes o serviço. Não estou absolutamente só, e é bom; posso sentir-me cuidada sem nenhum zelo especialmente para mim. Pela manhã, alguns patos na água. Seriam patos mesmo? São pretos não andam em bando, avisto um aqui, outro mais longe. O das duas horas mergulhava e eu ficava esperando que aparecesse. Sempre errava o lugar. Ele havia feito um percurso maior. Que fôlego, a avezinha! Como será o seu sistema respiratório? Esse das cinco mergulhou e apareceu com sua pesca. Seria um peixe? Safanava-o no ar. Estava distante da terra. Cortá-lo-ia? Perderia um pouco do seu alimento? Engoli-lo-ia inteiro? Ficaria engasgado? Quando vi, já havia feito a sua refeição e mergulhava a cabeça várias vezes na água como para lavar-se ou tomar água para o meio-vivo descer.
Ouço pássaros, ouço máquinas trabalhando em algum ponto distante do outro lado da represa. Agora é um caminhão acelerado tentando subir um terreno mais íngreme com uma carga provavelmente maior que a de sua capacidade. Os pássaros, ouço-os o tempo todo e não desgosto. Não lhes sei as espécies, nem os vejo sempre. Os mais chegados dão rasantes nas águas ou, outros, vêm até perto de mim, na grama. Esses da grama têm peitos amarelos e dorsos escurecidos.
Quando chegar a noite, estarei só. Ontem tinha a esperança de que ele me viesse ver. E veio. Quando eu voltava com um aparelhinho elétrico para espantar os insetos, 220w, ele apontou. Que bom, era ele!Realmente foi bom. Eu vivia dizendo que vinha, que ia, e ele se espantava sempre: para onde; como: aqui não está bom? Teria tudo para estar bom, mas olha que eu nem podia estender uma rede nos fundos, não podia concentrar-me nas leituras, nem fazer nada que não ouvisse, de onde estivesse, os latidos dos cães dos vizinhos. Eu não mando nos cães dos vizinhos, não tenho nenhum controle sobre eles. Às vezes eu queria ter controle mental e remoto sobre eles. Não quero mais falar daqueles cães; eles sempre me vencem e me esgotam a paciência.
Ia dizendo que gostei que ele veio. Durante o dia não consegui confirmar-lhe que vinha; deixei recado que estava com o celular. Quando me ligou, estava chegando; convidei-o para vir à noite, mas ele disse que não sabia se vinha. Chegou meio assustado, meio com jeito de que não conhece a mulher que tem, calado, seguindo os meus passos até o banheiro ou andando pelo quarto minúsculo enquanto eu ajeitava as coisas no ritual para deitar-nos.
Fizemos amor talvez como façam os amantes. Falamos coisas novas; eu lhe pedi, coisa simples, que repetisse várias vezes uma frase, e ela se tornou, então, nova, mágica para nós. Eu pedia que dissesse de novo e de novo e olhava o seu rosto, a sua boca,o seu queixo, num movimento que não vira até então. Ele sabia que eu gostava; ele podia ter certeza de que estava me fazendo feliz.
Hoje cedo saiu e eu pensei que poderia ter-me levantado, e eis que tive uma segunda oportunidade: ele voltou. Como fazia para que abrissem o portão? Expliquei-lhe. Saí fora do quarto. Acompanhei-o com os olhos. Abriram o portão. Ele ainda me acenou e buzinou baixinho três vezes. Soou-me como a frase da noite.
De uma coisa tenho certeza: pela manhã ele foi tranquilo, eu não lhe estava fugindo, realmente tinha vindo para descansar e eu era absolutamente dele. Hoje ele não vem; amanhã levanta cedo e pega a estrada; vai para o seu curso no sábado e domingo. Eu fico aqui até sábado à tarde. Aí sou eu a esperá-lo de novo, mas dessa vez, em nossa casa. Eu gosto dela, mas, se pudesse, queria mais distância dos cães dos vizinhos.