Opus 71a

OPUS 71A. DANÇA DA FADA OBESA DE TANTO COMER AÇUCAR

OU

SOBRE COMO PASSEI A ODIAR (AINDA MAIS) A CIDADE DE SÃO PAULO, E CONSEQUENTEMENTE A MIM MESMO

(Renan Flores)

ADVERTÊNCIA

Ao leitor desta crônica devo deixar certas informações de sobreaviso.

Primeiramente quem eu sou. Meu nome é Renan Gonçalves Flores, tenho vinte e um anos de idade e estou a um ano de me formar em Radialismo. Pagando. Minha mãe paga pra mim e eu não a ajudo em absolutamente nada. Tenho vinte um anos, sou gordo que nem um porco, feio que nem um porco, nojento que nem um porco, educado que nem um porco. Sou um porco em forma de gente. Nunca levantei minha gorda bunda de porco pra trabalhar na minha vida e provavelmente nunca levantarei.

Sou muito talentoso nas artes da escrita e da música, mas infelizmente é talento desperdiçado, pois não faço nada em absoluto com tão almejados dons. Sou mimado, egoísta, neurótico, violento, mal educado, burro, incompetente e uma série de outros adjetivos similares que eu não cito para não estender essa advertência introdutória mais do que o necessário.

Tenho alguns distúrbios, como personalidade antissocial e maníaco-depressiva, que eu mesmo identifiquei. Como pode ver o leitor, sou também prepotente e metido, a ponto de afirmar coisas que só um especialista em psicologia poderia.

Tenho pavor de multidões, que ora se converte em depressão ou em ódio, dependendo do meu estado. Moro numa das cidades mais populosas do mundo e onde vou há fila, multidão, gente enfiada uma na outra.

Isso por si só já é motivo o bastante pra mim odiar a esta cidade. Aliás eu já a odiava, cogitando até me mudar daqui, mesmo tendo de abrir mão das inúmeras oportunidades oferecida. No entanto, certos eventos me ocorreram recentemente que fizeram aumentar não só o ódio que tenho por esta cidade, mas o ódio que tenho por mim mesmo, e pretendo aqui narrá-los num esforço inútil de aliviar o peso que me curva e me tem feito chorar todas as noites e manhãs desde tal ocorrido.

Avisado o leitor a não levar a sério nada do que for escrito a partir deste parágrafo, pois se trata apenas das mágoas de um porco mentalmente perturbado e chorão.

Aliás, o evento que será narrado a seguir aconteceu durante um período de grande depressão, por tanto, o texto é permeado por sentimentos como tristeza, culpa, raiva e similares, frutos do estado de espírito do escritor.

CRÔNICAS DE UM PORCO

Tudo começou por volta de janeiro. Mais uma vez minha boa e inocente mãe, a mulher que eu desgracei ao nascer, disse que eu deveria arranjar um emprego pra ajudá-la a pagar minha faculdade. Vale dizer que meu curso custa perto de R$1200 mensais, quase metade do salário de minha mãe.

Como eu nunca me esforcei pra procurar emprego, ela me trouxe um jornal informando que estavam abertas as inscrições para o Concurso Público do Metrô de São Paulo. Tudo o que eu deveria estudar era português e matemática, nada avançado, somente o básico que qualquer pessoa de bom senso deve saber.

Aceitei. E lá foi minha mãe desembolsar R$80 para pagar a taxa de inscrição do concurso.

A prova se daria dali a três meses e eu tinha à minha disposição uma dezena de livros sobre o assunto. Teria apenas de separar uma ou duas horas por dia para estudar sem pressa coisas bobas que eu já deveria saber desde a época do ensino médio, mas que por burrice e negligência nunca assimilei.

Deixei o tempo ir passando. Preocupada, minha mãe perguntava se eu estava me esforçando nos estudos, ao que eu mentia. Dizia que estava estudando no computador, quando na verdade passava o tempo com joguinhos eletrônicos e redes sociais.

Faltando cerca de mês e meio finalmente comecei a estudar. Como tenho mais afinidade pela matéria de português comecei por esta. Estudei classes gramaticais, tempos e modos verbais, concordância, nova ortografia, etc.

Provavelmente eu teria me dado bem na prova se tivesse mantido o ritmo. Mas por covardia, como mostrarei nos parágrafos seguintes, abandonei os estudos.

Certo dia, no intervalo da faculdade, estava conversando com alguns colegas de turma e citei minha inscrição para o concurso. Qual não foi minha surpresa quando três dos nove colegas responderam que também prestariam o concurso para o mesmo cargo que eu. Como não acredito em coincidências procurei me informar mais e descobri que da minha sala, nove pessoas iriam fazer a mesma prova que eu. Nove pessoas iriam concorrer comigo. Dessas nove, três eram, sem dúvida, muito mais inteligentes do que eu e com certeza me passariam. As outras seis tinham grandes chances de me passar também.

Voltei para casa meio desapontado e não consegui estudar nessa noite.

Retornei aos estudos no dia seguinte, mas com o pensamento envolto em preocupações. Graças à minha preguiça, faltava apenas um mês para a prova. Seria impossível estudar português e matemática em seguida, então resolvi começar a estudar as duas matérias ao mesmo tempo. Como sou muito burro para matemática comecei bem do básico, como operações com números quebrados, potenciação, porcentagem, geometria básica. Mas, repito, sou burro e não conseguia decorar as fórmulas e regras. Comecei a me sentir frustrado.

Poucos dias depois minha mãe veio conferir meus estudos. Citou que muitos de seus colegas de trabalho disseram que seus filhos, irmãos e parentes também prestariam essa prova. Na hora me deu um estalo e o sangue subiu à cabeça. Perguntei quantos mais ou menos tinham dito isso, ao que ela respondeu que não sabia exatamente, mas vários.

Alguns deles inclusive haviam formado um grupo de estudos e me convidaram. Isso me pareceu a maior idiotice de todas. Eles eram meus adversários, estavam competindo contra mim e eu contra eles. Como podiam me convidar pra estudar junto?

Quando minha mãe se retirou, não consegui me concentrar mais nos estudos. Fiquei pensando no tanto de gente que estava competindo comigo. Era muita gente, muita gente mesmo. Minhas chances de ser aprovado agora eram muito poucas ou quase nenhuma.

Tudo piorou quando no ensaio da minha banda, no sábado, o guitarrista também disse que ia participar. Senti que a cidade inteira estava disposta a me desafiar, mas eu não tive coragem de aceitar a peleja.

E foi assim que, por preguiça e covardia, eu abandonei meus estudos.

Na noite anterior à prova meus nervos estavam à flor da pele. Não conseguia pensar em nada a não ser na maldita prova.

Eu tinha certeza de que não ia passar e por isso mesmo não devia ir fazer. Mas então eu pensava nos oitenta reais jogados fora por minha mãe e sentia remorso, pensando se não devia ao menos tentar. Seria a prova máxima da humilhação: pagar oitenta reais por um pedaço de papel atestando minha incompetência.

Tentei jantar, mas pouco depois vomitei. Minha úlcera devia estar atacada pelo nervosismo.

Tinha apenas seis horas para dormir, mas no estado em que me encontrava não conseguiria dormir mesmo. Passei a noite com um fone ouvindo música pesada no volume máximo. Estava exausto, morrendo de cansaço e nervosismo, mas não podia dormir.

Recentemente adquiri o hábito de admirar a lua e as estrelas de madrugada. Saí na varanda a fim de admirá-las, mas a lua estava minguando e o brilho das estrelas difuso. Malditas estrelas! Justo quando mais precisava delas, me abandonaram.

Chorei muito durante a madrugada e não uma vez tive ímpetos de me cortar com uma lâmina de barbear.

Quando finalmente raiou o dia, tomei coragem e me pus a caminho do local da prova.

Às seis e meia da manhã de um domingo o trem estava cheio. Comecei a ficar nervoso de novo. Imaginei que seria uma grande coincidência que todas aquelas pessoas estivessem indo fazer a mesma prova que eu. Era muita gente mesmo!

Por sorte consegui um lugar sentado. Ao meu lado ia um rapaz loiro e forte concentrado na leitura de um caderno. Não sou o tipo de pessoa que gosta de ficar bisbilhotando as coisas dos outros, mas imaginava o pior e olhei. Meus temores se concretizaram: ele estava estudando! Olhei em volta e vi que várias pessoas estavam lendo alguma coisa. Estariam todos estudando também? Senti minha úlcera doer.

Na estação onde fiz baldeação para outra linha uma mulher à minha frente lia uma agendinha. Olhei. “Concordância gramatical”! O trem não chegava e a plataforma ia ficando cada vez mais cheia. Minha úlcera doía, meus olhos começaram a ficar vermelhos. Eu queria voltar pra casa, abandonar a empreitada ali mesmo, no meio do caminho. Ou então me jogar na linha se a porra do trem não estivesse tão atrasado em relação a meus propósitos suicidas.

Quando o trem finalmente chegou o local estava abarrotado de gente e todos se espremeram violentamente para entrar.

Com todas as minhas forças me pus a imaginar que era gente voltando de festinhas no centro ou indo visitar parentes longes. Acreditei nisso como uma criança acredita em Papai Noel. Quando cheguei à minha estação de desembarque, a barba do bom velhinho foi brutalmente arrancada pela multidão que desceu junto comigo. A multidão que me acompanhou subindo a escada. A multidão que me acompanhou pela mesma saída. A multidão que me acompanhou pela mesma avenida. Todos caminhavam no mesmo passo, na mesma velocidade, com o mesmo balançar de braços e pernas, como numa grande coreografia. Nem mesmo Tchaikovsky seria capaz de compor um balé para tão horrendo espetáculo.

Não eram pessoas que eu via ali, mas um grande corpo formado por pequenos organismos. E eu fazia parte deste ser asqueroso.

Mais do que qualquer outra coisa, eu queria ir embora e me trancar em meu quarto. Era aterrorizante a imagem: uma avenida tranquila numa ensolarada manhã de domingo assaltada por um exército de pessoas carregando bolsas e mochilas. Era um apocalipse estudantil.

Logo na calçada do colégio onde eu prestaria a prova havia uma grande fila cruzando a esquina. Barraquinhas de cachorro-quente, camelôs vendendo canetas e bolsas. Pequenos abutres tentando arrancar um pedaço de carne desse grande ser vivo que só desperta em dias de concurso.

Lá dentro havia outra fila para conferir as salas de cada pessoa. E mais outra para entrar no prédio. E mais outra para subir as escadas para o primeiro andar. E mais outra para o segundo andar. E por fim outra grande fila para adentrar a sala. Ainda não citei que cheguei trinta minutos adiantado.

Entrei na sala. Era uma grande sala, cabia cerca de setenta pessoas ou mais. Sentei-me na primeira fileira. Uma senhora com cara de poucos amigos disse que eu deveria colocar meu celular e qualquer outro aparelho eletrônico dentro de uma sacola e entregar a ela, que me devolveria após o término da prova.

A sala foi enchendo, enchendo. Carteiras tiveram de ser trazidas para abrigar a todos.

Soou uma sirene que mais parecia um sinal de guerra. Os alunos foram fechados em suas salas. Quem estava fora não podia entrar e quem estava dentro não podia sair. O instrutor começou a chamar um por um para entregar o gabarito e o caderno de questões.

“Renan Alfredo. Renan Augusto. Renan Batista. Renan Carlos. Renan Coutinho.” Ouvi alguns risos abafados. Eu mesmo achei engraçado. Mas a chamada prosseguiu. “Renan Eduardo. Renan Estevão Soares. Renan Dutra.” Me recuso até agora a acreditar que tenham me colocado numa sala onde só tinha Renan.

Até chegar em mim, Renan Gonçalves, cerca de vinte outros Renans foram chamados. E assim continuou, embora eu não tenha mais prestado atenção aos sobrenomes. Chegou a vez das mulheres. Todas Renatas.

Setenta pessoas, sendo todos eles Renans ou Renatas. Por causa da semelhança dos nomes, tratavam-nos por “este daqui”.

Fizeram a gente assinar uma dezena de papeis. Em seguida tiraram nossas impressões digitais. Leram-nos uma série de regras de conduta e bom comportamento durante a prova. Imaginei que o tratamento nas penitenciárias não deveria ser tão diferente, com exceção dos estupros.

Após uma longa espera, finalmente fomos autorizados a começar a prova. As questões de português até que não foram tão difíceis quanto imaginei. Caiu muito pouco do que eu estudei. O que caiu mais foi interpretação de texto, matéria que eu particularmente domino bem, devido ao hábito de manter constantes leituras. Creio que das vinte questões, dezessete eu respondi com certeza.

Um sorriso começou a aflorar dentro de mim. Senti esperança de que talvez conseguisse ser aprovado. Eu ia trabalhar e pagar minha faculdade!

Mas então abri o caderno de matemática. Eram questões de raciocínio lógico-matemático. Reproduzo um exemplo aqui:

12) Uma empresa, contratada para construir trilhos para o metrô em 2011, ultrapassou em 25% o pedido. Sabendo que mesmo que fosse construído 1,8km a menos desse total, ainda assim a empresa teria ultrapassado em 15% o pedido. De quantos quilômetros foi o pedido do metrô?

As questões eram desse modelo para pior. É lógico que são problemas fáceis que podem ser resolvidos com fórmulas simples rapidamente. Mas não esqueça o leitor que eu sou um porco burro e não estava de forma alguma apto a resolver tais equações.

As questões não resolvidas se avolumavam e riam de mim. Toda minha esperança fora brutalmente destruída e eu queria sair da sala. De vinte questões respondi apenas três com certeza. Todas as outras dezessete eu não fazia a mínima ideia de como resolver ou quais eram as alternativas mais prováveis. Atirei no escuro, de olhos vendados e com uma mão amarrada nas costas.

Mais dez questões relacionadas a atualidades e o mesmo fracasso. Eu, que me gabei de ler notícias na Internet toda semana, não sabia dizer quem era o autor de “Escrava Isaura”.

Quando finalmente terminei a prova, apenas duas outras pessoas haviam terminado também. Saí da sala com as pernas bambas, o coração apertando dentro do peito. Fui ao banheiro e lavei meu rosto diversas vezes. Olhava no espelho e via o fracasso estampado em meu rosto. Meu corpo cheirava a derrota e em minha mente estava gravada a frase “Você não presta pra nada”.

Só pensava em voltar pra casa e nunca mais me envolver naquele tipo de coisa.

Chegando em casa não comi, não tomei banho. Subi ao meu quarto e tomei duas pílulas de um antipsicótico poderoso que eu ganhei de uma amiga. Uma única pílula é capaz de me derrubar durante um dia inteiro. Senti vontade de cometer suicídio por overdose, mas o máximo que tive coragem de tomar foram duas pílulas que me colocaram a nocaute em menos de dez minutos.

Quando acordei, me senti profundamente depressivo. Chorei por vários minutos, pensando na minha inutilidade, incompetência e descaso.

O leitor já deve ter reparado em como eu falo em chorar. Pois é, eu sou assim. Choro por qualquer merda. Queria não ser assim, mas infelizmente sou. Um porco chorão. Mas, por favor, segura lá. Faltam só alguns parágrafos para terminar a narrativa.

Como eu dizia, chorei, e chorei muito. Todas as questões da prova repassaram em minha cabeça e mesmo agora eu não conseguia encontrar as fórmulas que as resolveriam. Fiquei imaginando o que iria dizer pra minha mãe, como criaria coragem de dizê-lo. A verdade é que até agora não contei e pretendo continuar sem contar.

Relembrei o número monstruoso de pessoas caminhando pela avenida como um único ser vivo. O trem mais que lotado.

E odiei a cidade. Essa cidade cheia de gente igual e ordinária. Odiei a cidade com todas as minhas forças e me decidi em fugir dela na primeira oportunidade que me aparecer quando terminar minha faculdade (pagando, lembre-se). Passei a odiar ainda mais a cidade de São Paulo do que já odiava antes.

Depois, odiei a mim mesmo. E com razão. Odiei minha falta de preparo, meu descaso com uma coisa de tamanha seriedade. Odiei minha burrice. Odiei minha covardia. Odiei meus chutes. Em todo mundo não há um sábio ou estudioso capaz de responder a questão que mais me atormenta: o porquê de eu ter vindo ao mundo, com que propósito. O porquê de eu ter nascido assim, o porquê de eu ser tão burro e ingrato. Isso nunca será respondido. Ainda que eu tivesse ido bem, ainda que tivesse acertado todas as questões da prova, nem mesmo todos os acertos do mundo são capazes de justificar o erro de eu existir.

Passei a odiar a mim mesmo com ainda mais força do que nunca e decidi finalmente me afastar de qualquer pessoa que queira estabelecer laços mais profundos comigo além do estritamente necessário. Os poucos sonhos em que eu ainda acreditava abandonei. Percebi o quanto minha vida é sem propósito e utilidade. Parei de lutar contra o destino e admiti o que foi reservado pra mim desde meu nascimento: aos poucos estou me tornando um porco de verdade.

Renan Porco Flores,

Dezesseis de março de dois mil e doze.

Renan Gonçalves Flores
Enviado por Renan Gonçalves Flores em 18/03/2012
Código do texto: T3560855
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