A humanidade é incrível

Crescerá pensando que será possível ganhar a vida cantando. Ele descobrirá nas cordas da viola o talento para com as aves canoras e gravará sua própria voz numa fita. A obra sairá massivamente do mercado e chegará o dia em que ele gravará no sistema USB e colocará na WEB. Haverá o dia do cantor depois de todo o processo de amadurecimento da obra melodiosa e descobrirá que há milhões de outros rapazes que fizeram à mesma coisa sem sequer adquirir uma só moeda compondo publicidades musicadas, nem namoradas para beijos. Haverá outro dia após a frustração em que contornará o melômano severo com a mais nova aptidão gráfica. Sua sala se transformará em ateliê e ele sempre ótico irá compor a mais cega alegoria plástica, numa semântica sempre estética. Acordará mais tarde para levar quadros ao senhor das molduras que avaliará a coisa toda num suspiro naquele ambiente de pura transparência da galeria de vidro. Baterá diversas fotografias das telas, reunidas de modo digital aquelas em que terminou com verde e outras onde emplastou apenas o azul cerúleo. Todo o processo servirá para novamente encontrar um caminho imenso dentro da minhoca espacial que hoje tem o nome de recusa. A rejeição moderna de uma obra de arte é simples: coloque isso na ‘internet’, mas jamais numa parede.

Sairá da galeria, arrasado por tamanha sutileza, enquanto o dono de tudo pregará anúncio na porta do estabelecimento dizendo: procura-se Picasso. Tudo a olhos vistos.

Você o consolará dizendo que mãe consola e serve para tudo. Voltará da rua feroz contra o mundo do capitalismo universal, onde pelo menos é possível ser um bom caipira. Acalentado pelo coração de mãe fugirá para o ramo da construção poética civil e mágica. Sentirá aquela verve no olhar através do espelho numa cena de sucesso comercial. Exato e certo poeta em pessoa.

Poeta sendo aquele que realiza a produção de verso livre de estatutos mesmo estudante com alma de funcionário público. Em pouco tempo se inclinará aos aspectos mais íntimos da versificação. Repousará sobre a lira tanta matemática nas rimas que as metáforas fugirão atordoadas antes de serem apanhadas e coligidas na obra seleta. O editor será um homem que desejou escrever algum livro, sem distribuidor, para deduções rápidas. Negociará cada edição com esmero até encontrá-la disponível na rede mundial de computadores com pouquíssimos acessos. Baixa venda, pouca procura, pouca demanda. Nada fascina mais o alheio. Nem os poemas que dizem aurora, além das lamúrias sentimentais, muito além da perfeita e embriagada declaração de amor à América numa mesa de bar.

Compreenderá finalmente que o mundo é incrível e sustentável apenas na manhã seguinte quando um novo desejo de coisa bater em sua porta. Desejo de Senado. Desejo de presidência.

Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 17/03/2012
Reeditado em 22/06/2020
Código do texto: T3559606
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