O lago e eu
Julho de 2000
O que vejo é bonito e gostaria de registrar. Talvez seja o lugar mais bonito a que possa vir a pé, sem canseiras, não tão distante de banheiro e água. Do outro lado do lago, no alto, o condomínio, com suas vidas lá dentro. Quando escrevo, nem olho para a água, mas sei que ela está aqui perto. Estou só. Filhos e marido estão nas suas lidas, mas não são meus. São deles próprios. Só eu me pertenço e esta visão me pertence. Eles não me têm nesta hora e esta é a sensação passageira de liberdade. Momento pleno de respirar, ouvir o canto de um pássaro distante, de vários pássaros agora; de vozes das gentes pescando, de carros passando.
Viro-me contra o sol e árvores projetam suas sombras na água um pouco trêmula. Dois cães correm entre dois meninos que se riem e falam-se quase gritando. Os cães estão felizes; estou longe deles, mas sei que, como correm para diante e para trás, ao encontro de um e outro menino, quase se trombando, estão felizes.
Assim deveriam ser todos os cães: livres, soltos, sem coleiras e correntes, sem calçadas de cimento, sem corredores estreitos. Só os cães presos são infelizes e neuróticos. Domésticos gostam de estar perto de seus donos, mas pisando a terra, a relva, gastando suas energias, exercitando-se atrás da infância feliz dos seus pequenos donos.
Esses meninos, a continuarem assim, não precisarão nunca de academia: já desceram e subiram, sei lá com que propósitos, mas vejo que sempre retornam ao ponto onde há um adulto. Talvez seja a mãe de um deles, talvez ela consiga levar um peixinho para o jantar.
A mulher, por sua vez, não precisará de psiquiatra ou psicólogo; com certeza resolverá suas mágoas ali pescando. O anzol talvez lhe traga apenas a lembrança do perdão ou o esquecimento da ofensa. Talvez ali mesmo ela enterre uma dor ou jogue, com a pedrinha, a indiferença, a ingratidão sentida.
Ali e acolá faíscam umas bolhinhas. Devem ser uns peixinhos. Deste lado não vejo movimento de pescadores, mas cá perto um peixe maior fez barulho e afundou-se, deixando ondas circulares na superfície. O céu está azul riscado de branco, como se um escultor invisível de nuvens as tivesse puxado todas de bem longe, fazendo-as convergir para o mesmo ponto, sobre o arvoredo do condomínio.
Na verdade este momento é único e meu. Neste momento só isto que eu sinto, vejo e vivo é meu. Estou tranqüila, vazia de posses e possessões. Daqui a pouco tenho que ir de volta. Antes de sair tomei um bom suco. Sinto que tenho que retornar. Ontem estive aqui, hoje estou, amanhã quero estar, mas se esta intenção me aprisionar, quero fugir e estar livre, ter a ilusória e momentânea sensação de liberdade, como a tem, mais que eu talvez, o pássaro que canta nos galhos da árvore sob a qual escrevo.
Uma família passa perto de mim: o jovem homem, a mulher e o seu bebê, com passinhos incertos. Um dia ele voltará ou procurará sozinho outros lugares como este, levando consigo talvez a sua família, ou sozinho, roubando para si um pouco de liberdade de nenhuma posse, sem nenhum dono.