Ao atravessar a rua

Há coisa de um mês e meio, perdi um professor da faculdade - um que dizia que eu devia trabalhar no Washington Post, e que era ateu e tentava nos dar aulas de religião, mas sem conseguir me converter às sagradas escrituras de Richard Dawkins, embora tenha alcançado algum sucesso na destruição do meu relativismo cultural. Ele que dizia ter escolhido jornalismo na fila de inscrição pro vestibular, após perguntar à atendente "eu tenho cara de quê?". Um que, trabalhando em jornal, se vestia de mendigo só pra ver se era verdade que a prefeitura sumia com eles. Também ele que me emprestou a sua mãe em Ponta Grossa, quando fui para lá teorizar sobre a crônica num encontro de comunicação. Tinha 38 anos. Morreu atropelado por um ônibus biarticulado, aqueles grandões, que fazem a fama de Curitiba como modelo de transporte coletivo.

Não demorou nem duas semanas e eu passei por situação semelhante. Tentando atravessar uma rua movimentada para chegar ao meu trabalho, eu, que tenho o péssimo hábito de querer me antecipar às coisas, já olhava se no lado de lá da pista estava vindo algum carro, sem prestar a devida atenção no meu próprio lado - e, tenho que dizer, sem nem cogitar a possibilidade de andar uns trinta metros até a faixa de pedestres. E ao ver que do lado de lá não vinha carro algum, eu simplesmente desci da calçada e botei meus pés na rua, com o nobre objetivo de atravessá-la. No que fiz isso, passou por mim, em coisa de centímetros, um carro que vinha em velocidade no lado em que eu não havia olhado. Deus é misericordioso e achou que havia algo mais ainda para eu fazer por aqui, e por isso perdoou a minha imprudência e me salvou. Com isso, impediu também que os tablóides - só esses se ocupam de atropelados anônimos - tentassem destrinchar o episódio e o seu personagem.

Alguém abriria a minha bolsa atrás de coisas, querendo saber quem eu era, ou algum detalhe qualquer que ilustrasse melhor a minha triste história. Encontraria lá dentro um exemplar de "Cem Anos de Solidão", que ainda não havia terminado de ler. Um dos José Arcadio tinha acabado de voltar da Europa e encontrou na casa da família apenas um dos Aurelianos - quase todos os demais personagens já haviam morrido, e nenhum atropelado. Era já a parte final do livro, mas não havia sido concluída. Na mesma bolsa, encontrariam uma rosquinha de creme, dessas vendidas em supermercado. Eu pretendia comer naquela tarde. Vencia no dia seguinte. Ela estragaria só depois de mim. E dentro havia ainda um papel marcando dois exames de rotina para dali a duas semanas - uma eternidade, tempo mais do que suficiente para que uma pessoa ressuscite.

Então alguém encaixaria as peças, e descobriria que eu estava justamente vindo de uma consulta médica. Mas não conseguiriam recompor toda a história daquele dia. O pessoal do meu trabalho lembraria que pela manhã eu estive acompanhando uma reunião, da qual deveria fazer um texto na parte da tarde. Mas foi tudo perdido. Ninguém mais saberia o que aconteceu naquela reunião pela manhã. A ninguém ocorreria que naquele dia eu havia almoçado meio às pressas num restaurante barato, em que as mesas são no subsolo, e que havia uma televisão ligada e as pessoas comentavam futebol. De lá eu peguei um ônibus e andei poucas paradas, até descer num shopping para usar o banheiro e escovar os dentes - digam o que disser: mesmo atropelado, os dentes estavam limpos. E eu levaria comigo o motivo de estar indo a pé ao trabalho, quando podia ir de ônibus: além de economizar, achei que não era longe e chegaria ainda mais rápido, pois queria chegar o quanto antes e compensar minha ausência.

Não, nada disso aconteceu, e dou graças por isso. Mas se eu tenho uma coisa a recomendar ao leitor, é que use filtro solar. Digo, não. Quer dizer, isso também. Mas o que quero dizer é que olhem para os dois lados antes de atravessar a rua. E que descuido nenhum seja capaz de acabar com toda a sua luta aqui embaixo. Amém.

milkau
Enviado por milkau em 16/03/2012
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