Da Morte...
É estranho encarar a morte de frente. Lembro-me quando minha mãe faleceu, fazia frio, muito frio. Quem mora no sul, sabe o que estou dizendo. As madrugadas são cortantes mesmo no mês de maio.
Mas nada se comparava ao frio, à fragilidade que senti, tanto minha, quanto de minha mãe ali despida e enrolada em um lençol. Ela que era tão discreta, estava a mercê da imobilidade da morte. Não sei ao certo se era um necroterio ou algum lugar do hospital em que chamam os parentes para tomarem as providências do funeral.
Não importa a denominação do recinto, lá estávamos nós. Meu irmão, minha cunhada e eu, na mais solitaria das horas. No momento onde tudo deixa de ter importância e nos agarramos a cada detalhe de lembrança que possa nos trazer de volta quem amamos. Inútil. O que vem a seguir são os trâmites legais, sociais onde a dor lacera e dilacera quem fica. Não há nenhuma outra passagem de minha vida em que tenha chorado tanto e demorado tanto para me recuperar.
Enfim...
Nessa semana infelizmente um cãozinho do qual estávamos cuidando, um dos tantos que aguardam adoção, não resistiu aos maus tratos e à fome que provavelmente sofreu nas ruas e em sua debilidade, apesar de medicado e assistido, morreu.
Não foi o primeiro bichinho que perdemos, já tive gatos envenenados, cãezinhos que por um motivo ou outro se foram.
Mas é sempre doloroso. Claro, que não se compara à dor de perder minha mãe. Não há parâmetros para tal dor.
Mas ali estava ele em sua caixinha, magro, indefeso. Não havia em casa onde enterrá-lo. Ligamos para a Ong da qual minha filha é voluntaria, responderam que o Centro de Controle de Zoonozes enviaria alguém para buscá-lo, sinceramente não sei o que fazem com tantos cães que morrem, uns por eutanásia, outros por motivos diversos. Mas esse era o trâmite a ser seguido. Não vieram.
Colocá-lo no lixo parecia um descaso, uma afronta, foi uma vida que cuidamos e perdemos.
Por quase dois dias esperamos. Quando nada mais restava a fazer, o cheiro já se propagava pela casa apesar de termos tomado o cuidado de fechar sua caixinha e embalá-lo em sacolas plásticas. O odor da morte, então, passou a ter cor, som, textura.
Da vida que ali habitara só restava o corpinho se deteriorando em uma triste realidade mesmo após morte. Em seu silêncio havia uma voz, havia um pedido de ajuda.
Quase ao lado de casa, há um terreno baldio, a solução foi ali enterrá-lo. Só a terra, a bendita terra, enfim o acolheu e findou o descaso com que foi tratado em seus poucos meses de vida.
Eu sei que para muitos isso pode parecer uma grande bobagem, dirão: "Era apenas um cachorrinho. Tanta gente passa por isso."
E eu digo: " A carne minha ou dele, só quer, só pede , só precisa de um pedaço de chão, de terra, para que ela, a morte não se mostre tão cruel e faminta quando nos recebe em seu seio. E nessa hora, que nossos olhos e almas ainda possam ter uma visão mais amena do fim de uma vida e de nós mesmos".