Eu fiquei um mês sem poder falar...

Carlos nunca gostou de certas partes do seu corpo. Quando criança, os apelidos mais carinhosos que recebia era Fusca de Portas Abertas, Oreia, Dumbo, TopoGigio e similares. Quando adolescente, se alguma moça olhava para ele, não sabia se ela estava admirando sua beleza ou reparando suas orelhas de abano. Certo dia, cansado de tantas chacotas, resolveu dar um basta: “Vou fazer otoplastia”, disse à esposa, que não foi muito a favor. Até falou nunca ter reparado nesse pequeno (grande) detalhe, o que mudou semanas após o feito. Mesmo assim, foi ela quem intermediou o papo da cirurgia, pois trabalhava com uma psiquiatra cujo marido era cirurgião. Carlos, de ímpeto, nem pensou duas vezes: fez um empréstimo bancário para pagar a cirurgia.

A cirurgia ocorreu tudo bem: anestesia local, algumas piadas do Dr. Gente Boa, bisturi elétrico e sangue escorrendo pelo pescoço. Carlos sentia-se um novo homem, pois estava destruindo aquele estigma que o perseguiu por vinte e seis anos. Nada mais tiraria sua alegria nem diminuiria sua auto-estima. Deleitava-se com o cheiro de couro, queimado pelo bisturi elétrico, e o nylon da costura parecia acariciá-lo. Via-se por uma estrada linda, com alamedas de ipês amarelos em tempo de florada, e sentia a brisa beijar-lhe o rosto. Era como se rejuvenescesse dez anos: sentia-se um menino que ganha um doce ou uma cartinha da namoradinha. Divagando nessas sensações, só voltou a si quando o Dr. levantou um espelho para lhe mostrar o resultado. Ficou contentíssimo e quase não coube em si de satisfação. Após a cirurgia, uma faixa preta foi colocada, segurando suas orelhas dissecadas, mas em poucos dias seria retirada e nunca mais precisaria se preocupar com o que o traumatizava até aquele momento. Enquanto o Dr. tirava o jaleco, Carlos já tinha tirado o avental e colocado suas roupas. Despediu-se do Dr. (Muuuuuuuuito Gente Boa) com um terno obrigado, embora tivesse pagado à vista pelo serviço.

Ao sair do centro cirúrgico, Carlos sentia-se leve, com a sensação do dever cumprido, embora tivesse sido ele o decepado. Ao primeiro passo na calçada, deparou-se com um filho da puta de um bêbado que veio com essa:

- Fala aí, Rambo.

Como um avestruz, enfiou a cabeça no chão e nunca mais saiu dali.

Antônio Carlos Policer
Enviado por Antônio Carlos Policer em 14/03/2012
Código do texto: T3554610
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.