Quanto dura a paixão?

                                                    Ygor da Silva Coelho

Tempo, espaço, destino são mistérios que me fascinam, por isto gosto de ouvir relatos que os anos não apagam. Histórias moldadas pela vida e que me remetem à juventude, como a que me contou o velho colega Alan. Confessando que, entre números e planilhas da sua profissão de Economista, não consegue concentrar-se nas letras, exigiu-me um texto para relembrar o seu tempo, nosso tempo de escola primária, o despertar de nossos olhos infantis para a beleza feminina. Achei tão fascinante a sua conversa que aceitei o desafio de relatar.

CENA 1 - 1959

A mudança para o Colégio Gato de Botas foi uma grande novidade para Alan. Ele tinha frequentado desde a alfabetização uma escola menor e foi para o Gato cursar o 5º ano primário, se preparar melhor para prestar o concurso de Admissão ao ginásio. Sim, para chegar ao ginásio havia um vestibular!

Ao chegar ao Gato de Botas teve impacto interessante.  As coleguinhas da escola anterior já eram quase irmãs, dada a convivência desde infância. No novo colégio afloraram, repentinamente, outros sentimentos e as novas colegas começaram a despertar a atenção daquele menino de apenas 10 anos: Lúcia era uma bonita morena, bastante extrovertida, de belas pernas e braços roliços. Posteriormente, chegou até a ganhar um concurso de miss. À frente de Lúcia, sempre na mesma carteira, na primeira fila, sentava a loirinha Ellen, de olhos azuis, um anjo de aparência tímida, muito atenta às aulas. Poucas vezes se ouvia a sua voz, o inverso exato da expansiva Lúcia, que gostava de evidenciar seus dotes.

Ellen frequentou o mesmo colégio desde a alfabetização, era a melhor aluna e todos os anos recebia uma medalha de honra ao mérito, moldada em ouro, entregue pelo prefeito da nossa pequena, em concorrido evento, com presença de pais, alunos e agregados.

Alan era, também, um bom aluno e vinha com boa bagagem. Como não conseguia ganhar a atenção, o olhar ou o sorriso da loirinha, talvez por vingança passou a disputar, em silêncio, nas notas. Ellen tirava um 8, Alan respondia com outro 8. Ellen 9, ele conseguiu ultrapassar com 9,5. Foi se aprimorando, a loirinha 9, Alan 10. Assim, foram sucedendo as provas e os resultados. A loirinha parecia não se incomodar. Chegou o final do ano e, a contragosto do colégio, Alan foi agraciado com o primeiro lugar e recebeu a medalha das mãos do entusiasmado prefeito, quebrando a rotina que premiava a preferida da Diretora.

Concluído o primário, Alan fez o teste de Admissão e foi cursar o ginásio no Estadual. A loirinha, de família abastada, seguiu para o mais caro colégio da cidade. Distanciaram-se. Muitas vezes Alan caminhou em frente à sua casa, de tão alto muro, na tentativa de vê-la. Impossível. Devia estar estudando barbaridade! Não a viu mais.

CENA 2 – 50 anos depois

Mudam os cenários, Alan desaparece da cidade, toma outros rumos. Foi construir seu  futuro, fez economia, ingressou no Banco do Brasil, surgiram outras paixões, outros amores. Mas o tempo é algo sublime, enigmático e tem o seu lado misterioso. Cinquenta anos depois, de férias em Salvador, Alan encontrou uma amiga de infância que, casualmente, comenta que Ellen tem uma loja no bairro da Graça. “Verdade?”  Mostrou pouco interesse, mas foi grande a vontade de rever a colega.

Passados 50 anos, a maldição da casa de muro alto o perseguia. Passou uma, duas, três quatro vezes na loja e nada. “A patroa não está”! Já estava encabulado, as funcionárias desconfiadas, quando resolveu tentar uma última vez, antes do seu retorno ao Recife, onde trabalha atualmente. Foi quando viu uma mulher loira, de costas, que afixava um aviso no mural de entrada da loja. Não teve dúvida. Chamou-a pelo nome, ela virou e os mesmos olhos azuis iluminaram o seu rosto.  “Eu sou Alan! Fui seu colega no Gato de Botas.”

A idade deixou marcas, mas a loirinha mantinha os traços da infância e a mesma calma de outrora. Um pouco frustrado, notou que ela não o reconheceu. A emoção tomou conta de Alan, fugiram as palavras, mas reuniu forças, falou das medalhas, de alguns colegas e da Diretora. Ela disse que ainda guardava as medalhas.  Apesar da beleza, não tinha aparência de uma mulher feliz. Comentou da irmã mais velha que falecera e dos dois casamentos frustrados.

Teriam tantos assuntos, mas foi uma conversa rápida. Meio século depois, a timidez dos 10 anos de idade no Gato de Botas reapareceu com a mesma intensidade. Sentiu que seria preciso recomeçar todo o processo, fazer novas provas, tirar boas notas, ganhar novas medalhas, impressionar a loirinha.

“Será que ainda há tempo?”.  Desculpe, mas acho que não, Alan! Console-se com o poeta Drummond:  Amar o perdido, deixa confundido o coração... As coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão.”

Ygor Coelho
Enviado por Ygor Coelho em 13/03/2012
Reeditado em 02/03/2013
Código do texto: T3551537
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